São Paulo – A Argentina tradicionalmente é o principal parceiro comercial do Brasil na América do Sul e a indústria automotiva um dos pilares desta importante relação comercial. Mas o mercado argentino tem perdido seu protagonismo nos últimos anos. No ano passado, por exemplo, o Chile, com menos da metade da população argentina, tornou-se mercado automotivo mais relevante que o dos Hermanos. A grave crise que persiste há alguns anos é a razão para a perda do papel desempenhado por nossos vizinhos, não apenas no cenário automotivo mas em diversos outros aspectos da economia.
Para compreender melhor o que se passa por lá e olhar para o futuro não apenas sob o aspecto da macroeconomia mas, também, para o da indústria automotiva, conversamos com exclusividade com o economista Dante Sica, sócio fundador da consultoria Abeceb e ex-ministro da Produção e Trabalho da Argentina de 2018 a 2019.
Uma das principais referências na área econômica na Argentina Dante Sica também é reconhecido pelos seus trabalhos tanto no setor público quanto na iniciativa privada. Tem expertise no desenvolvimento de políticas industriais e em negociações internacionais. Em 2019 foi condecorado pelo governo brasileiro com a Grã-Cruz da Ordem de Rio Branco, a maior distinção para aqueles que contribuem para estreitar as relações com o Brasil.
Nesta conversa online na quarta-feira, 19, Sica apresentou uma série de argumentos que interpretam a atual situação da Argentina e quais podem ser os acontecimentos que tirarão o país do que ele chama de “fundo do poço”.
Qual o panorama macroeconômico atual da Argentina e o que podemos esperar para o futuro?
A verdade é que a Argentina tem uma curva crescente de inflação aliada a uma baixa atividade econômica. Em maio a atividade econômica caiu quase 5% sobre igual momento do ano passado com a forte desaceleração do consumo e o grave problema da seca que derrubou mais de 30% a produção agropecuária. Por outro lado o governo não está promovendo nenhuma ação para corrigir esses desequilíbrios. Trata-se de um país totalmente desequilibrado macroeconomicamente.
O que poderia ter sido feito pelos governantes na Argentina?
Não há âncora fiscal, a arrecadação continua caindo muito mais rápido do que a capacidade de reduzir os gastos. A inflação tem afetado os programas sociais de forma a reduzir os recursos para este fim. Todos os gastos não indexados, como obras públicas, previdência social e os programas sociais não estão sendo geridos de forma eficiente. Há falta de uma âncora monetária capaz de contribuir para financiar o déficit diretamente e pagar os juros do Banco Central, que seguem muitos altos. A única política anti-inflacionária do governo é o controle de preços que não serve para nada. Por tudo isto há três meses houve um stand by no cumprimento do acordo com o Fundo Monetário Internacional porque não tivemos ingresso de dólares por causa da seca no campo. Assim os preços relativos de quase tudo estão totalmente desequilibrados com a realidade do poder aquisitivo do consumidor.
E o que mais pode acontecer de negativo na economia daqui em diante?
Hoje o que se faz para evitar um processo hiperinflacionário? Controle do câmbio, por exemplo. O problema é que agora temos mais de quinze tipos de câmbio na Argentina. Há cada vez mais dificuldades para as empresas poderem importar e quando autorizam a importação as regras para usar os dólares tornam os negócios inviáveis. Há todo tipo de controle da economia por parte do governo e é assim que seguiremos este ano, sem perspectivas de qualquer mudança até porque estamos em ano eleitoral para a Presidência da República.
Qual o cenário político nessa transição que acontecerá este ano?
O Ministro da Economia é candidato a presidente. Neste momento ele trabalha em um novo acordo com o FMI para receber dólares, mas para isto precisa cumprir uma série de metas fiscais difíceis que como candidato não pode fazer sob o risco de não se eleger. Então ele não aumenta os gastos sociais, por exemplo, e coloca a culpa da economia débil no FMI. Nos próximos meses veremos as atividades econômicas desacelerando ainda mais e os trabalhadores fazendo greves, o que irá reduzir os ingressos de dinheiro na economia como um todo.
Mesmo assim há possibilidades de o governo atual seguir no poder?
Há uma certeza de que o próximo governo terá que fazer reformas para sair desta crise. O nível de pobreza da população é profundo, assim como é clara a deterioração econômica da classe média. O que todos querem são mudanças radicais para podermos sair do fundo do poço. As pessoas não se levantam pela manhã gritando que desejam um superávit primário fiscal. E não sonham à noite que conseguiremos privatizar todas as empresas públicas. Sabem, no entanto, que se seguirmos fazendo o mesmo a sua situação ficará cada vez pior. Então há uma percepção de que não há espaço para manter o que está aí. Todos os candidatos, tanto os de extrema-direita quanto os mais à esquerda, são pró-mercado. Desta forma quem chegar ao poder poderá tentar fazer reformas difíceis para promover uma mudança radical ou primeiramente conter a inflação para equilibrar minimamente a economia antes de trabalhar em reformas profundas. São essas as opções do País neste momento pré-eleitoral.
E o que acontecerá com a economia argentina este ano?
É mais viável que a economia tenha uma queda. O primeiro trimestre teve um crescimento muito baixo, menos de 1%. Há uma clara redução do PIB per capita nos últimos dez anos que impacta no resultado que lograremos este ano. Poderemos ter uma queda de 3% a 3,2% do PIB em 2023. E no ano que vem dependeremos da velocidade das reformas e da resposta que essas mudanças causarão em toda a economia formal. Com um contexto diferente a expectativa é que voltaremos a crescer. Sabemos que haverá a possibilidade de equilibrar a economia argentina muito mais por causa dos investimentos do que por parte da contribuição do consumo das pessoas. Em resumo 2024 será um ano de transição.
Qual a expectativa com a presidência rotativa do Mercosul, que está com o Brasil?
A única expectativa que podemos ter é que o Brasil trate de estar cada vez mais próximo da assinatura do acordo comercial com a União Europeia. Na Argentina temos um presidente quase sem funções executivas e ações concretas, um ministro da economia que é candidato a presidente. Então, não vejo condições para uma conversa mais propositiva no nível do Mercosul que possa fazer surgir uma pauta com outros temas importantes para todos os sócios. Não há uma agenda propositiva e dinâmica para um processo de maior integraçãodos sócios.
Quais serão os benefícios para Argentina do acordo com a União Europeia?
Temos que olhar para este acordo não apenas com a possibilidade de ganho comercial. Trata-se de um acordo que trará credibilidade e investimentos. Outro benefício muito importante é que a Europa é reconhecida como benchmarking global em termos de regulação. Então, se cumprimos as exigências das regulações do Mercado Comum Europeu, estaremos aptos a fazer negócios em qualquer parte do mundo. Outra oportunidade é que a Europa está buscando fornecedores de energia alternativas, energia verde mais competitiva. Na Alemanha as siderúrgicas pagam US$ 25 por 1 milhão de BTU de gás, enquanto no Brasil e na Argentina esta mesma quantidade custa de US$ 3 a US$ 5. Podemos ser uma fonte de investimentos para atender a Europa com o gás natural que é abundante aqui.
As vendas de veículos caíram quase a metade em dez anos na Argentina. E assim como no Brasil apenas os veículos mais caros são vendidos. Os veículos de entrada quase desapareceram das estatísticas. Qual o reflexo dessa mudança de perfil de venda para as marcas que operam na Argentina?
O problema do mercado automotivo na Argentina está associado à falta de dólares. Há uma restrição muito forte na utilização dos dólares para importação de veículos. O mercado interno deveria ser abastecido com carros importados, sobretudo os pequenos feitos no Brasil. Como não temos dólares precisamos abastecer o mercado interno com o que é produzido aqui. Somos o quarto produtor mundial de picapes. Então, à medida que só temos esses modelos para oferecer, excluímos boa parte dos consumidores que não podem pagar tão caro para ter um veículo novo. Para piorar: como não há crédito para financiamento os pagamentos são feitos à vista, o que reduz ainda mais o volume de vendas. 60% das vendas foram feitas à vista, isto é muito grave. E impacta o futuro de toda uma cadeia automotiva
Mesmo assim o senhor acredita que possa haver investimentos na indústria automotiva no curto prazo?
Claramente a Argentina perdeu este ciclo de investimentos da indústria automotiva. Tivemos apenas o projeto da Ford para modernizar sua produção de picapes, o que nos faz pensar que em alguns anos eles possam ter uma nova atualização e passar a fazer modelos híbridos aqui. O outro grande projeto é o investimento da Toyota para que em 2025 inicie a produção de uma picape híbrida na Argentina. As outras fabricantes fazem uma cortina de fumaça sobre suas estratégias no país. Não há nenhuma intenção de investimento especialmente pensando nessa transição. Este ciclo de investimentos que perdemos deveriam já contemplar os modelos híbridos. E isto ainda não ocorreu.
Sobre a descarbonização, um tema que está muito forte no Brasil: quais as discussões que ocorrem agora na Argentina?
Primeiro que estamos muito atrasados. Precisamos de uma legislação para a eletromobilidade e isto nem está na mesa de negociações. Neste tema acredito que é preciso olhar para todos os setores industriais do país. A Argentina é um produtor de veículos, mas também produz energia. Somos um grande produtor e exportador de gás natural. Desta forma somos credores ambientais do mundo, não devedores. É preciso legislar levando em consideração esses potenciais. Claro que temos que reduzir a emissão de carbono, mas este balanço com a matriz energética precisa ser levado em consideração.
Mas o senhor acredita que teremos uma mudança radical a ponto de os elétricos tomarem conta do mercado algum dia?
Há muito trabalho a ser feito antes de dar como morto o motor a combustão interna. Ainda estamos engatinhando quando o assunto é a infraestrutura para abastecimento de veículos elétricos. É preciso reconhecer que os preços dos elétricos estão muito distantes das possibilidades da maioria da população. Precisamos ter em conta todos estes fatores. No entanto o setor privado, mais do que as regulamentações do Estado, pode acelerar todo esse processo.