Basta ter acesso, uma única vez, a um veículo com assistências que elevam a sua segurança para que o consumidor não queira mais dirigir sem eles. Ainda que isto esteja distante de sua realidade, uma vez que o custo para usufruir desses diferenciais é impeditivo à maioria da população brasileira, a segurança veicular e a tecnologia aliada à conectividade é um caminho sem volta.
É bem verdade que todos esses itens deveriam ser obrigatórios, pois desta forma dariam grande contribuição à segurança viária e na educação no trânsito, que precisam avançar juntos para que a mudança seja perene e o risco de acidentes caia drasticamente.
Pensando nisso iniciativa da AEA, Associação Brasileira de Engenharia Automotiva, promoveu recentemente debate em torno do tema A Sinergia entre a Segurança Veicular e o Serviço de Conectividade para a Mobilidade do Futuro.
Marcelo Azevedo Costa, professor de engenharia de produção da UFMG, apresentou a Linha 6 do Programa Rota 2030, que engloba projetos de pesquisa e desenvolvimento realizados pela universidade federal em parceria com a Fundep, a sua Fundação de Desenvolvimento da Pesquisa. A linha 6 fala de conectividade veicular e representa capítulo do programa do governo federal dedicado a estimular investimentos e fortalecimento do setor por meio de novas aplicações e tecnologias.
A captação para o seu primeiro edital foi finalizada com duas linhas principais, sendo uma de R$ 1,5 milhão para investimentos em empreendedorismo, formação de startups e desenvolvimento tecnológico. E, outra, de R$ 3,5 milhões, para desenvolvimento de pesquisas no período de até três anos.
Baseada em três pilares a linha 6 inclui projetos estruturantes de pesquisa, desenvolvimento e inovação, programa de aprendizado federado e programa de desenvolvimento de competências, todos relacionados à conectividade veicular e, em paralelo, à segurança de dados, em cumprimento à Lei Geral de Proteção de Dados.
Costa contou que foram submetidas até dezesseis propostas e que, por fim, chegaram à seleção de quatro para serem contratadas até o meio do ano.
“Tínhamos 36 temas diferentes, desde confiabilidade e conectividade do veículo com o ambiente externo a detecção de pedestres, tecnologia de privacidade de segurança dos dados e serviços de diagnósticos. Não entrou a parte de descarbonização, que possivelmente ficará para o segundo edital, aguardado para agosto.”
A parte da descarbonização inserida nesse capítulo não inclui biocombustíveis, que integram a linha 5, mas o uso intensivo de dados, sensores e monitoramento para que seja possível criar soluções que promovam a redução de emissões. Por exemplo: identificar rotas eficientes para melhorar a pegada de carbono: “O objetivo enquanto linha de pesquisa e financiamento é trazer o impacto desses veículos e suas tecnologias na preservação do meio ambiente”.
O professor assinalou que há diversos desafios lançados a partir de tendências e dificuldades do setor. E que a palavra da vez é conectividade veicular, além do uso intensivo dessa tecnologia e o fomento de P&D. As nuvens de dados são fundamentais para a geração de novas tecnologias.
“Um dos grandes desafios é a conectividade com o ambiente externo. Como usar esses dados para tomada de decisão? Como permitir que tecnologias compartilhem informações garantindo a segurança dos dados? Como garantir a privacidade do condutor e das empresas? Essa linha busca tratar disso.”
Costa destacou que também existe, atualmente, preocupação expressiva com manutenção preditiva e não mais com preventiva, o que requer o uso de inteligência artificial. O uso intensivo de dados demanda pensamento diferente com relação aos sistemas de manutenção para tornar-se mais eficaz na diminuição de acidentes de trânsito.
Um dos pontos que podem e devem ser melhorados a partir do avanço em P&D na área de segurança veicular é a redução de acidentes. Embora de 2011 a 2020 o número de mortos no trânsito tenha caído de 45 mil para 33 mil por ano, diminuição de 24% e de 37% se for considerada a projeção de 52 mil mortos em uma década, conforme dados do Pnatrans, Plano Nacional de Redução de Mortes e Lesões, o único número aceitável é zero, segundo o analista de infraestrutura Daniel Mariz: “Trata-se da principal causa de morte de pessoas de 5 a 29 anos. E, no pós-pandemia, a tendência é de alta”.
De acordo com ele 90% dos acidentes decorrem de falha humana. Ou por problema na via, por causa de manutenção em atraso. A grande questão é: o que está sendo feito pelo Pnatrans para melhorar pontos que induzem a acidentes?
“A proposta do Pnatrans é mudar os conceitos de quem projeta, muito enraizados desde as décadas de 60 e 70, e mudar também os daqueles que fazem planejamento urbano. O que inclui o desenvolvimento de manuais de sinalização, de orientação, de medidas moderadoras de tráfego.”
Mariz apresentou propaganda do governo da Nova Zelândia no qual o plano se inspira, em que é apresentada a responsabilidade compartilhada pelos acidentes. Durante o vídeo são destacados a falta do uso do cinto de segurança por todos, inclusive crianças e cachorros, quem vendeu os pneus do carro, a fiscalização, ou a sua ausência, de velocidade máxima, quem avaliou aquele veículo como seguro, e a engenharia para instalar as proteções da estrada, por exemplo: “Precisamos de todos para chegar a nenhum. Nenhuma morte é aceitável. Toda pessoa faz falta para alguém”.
Tecnologia e conectividade podem contribuir para a redução de acidentes
Marcelo Costa, da UFMG, chamou atenção ao fato de que, do ponto de vista de segurança viária, é preciso enxergar que se trata também de um problema de saúde pública, que muitas vezes é enfrentado a partir da análise dos seus dados. Mas nem sempre as informações estão disponíveis de forma confiável ou não existem fontes oficiais: “O carro, portanto, torna-se fonte extremamente relevante para fazer levantamento de dados para fins de saúde pública e de combate aos acidentes viários”.
Alejandro Furas, secretário geral do Latin NCAP, complementou que o tema segurança viária não se restringe à questão de carros mais seguros. Infraestrutura adequada é muito importante, ressaltou, ao citar que, muitas vezes, a tecnologia não funciona conforme o esperado.
“As tecnologias ajudarão a reduzir o risco e o erro humano, mas temos assuntos que não podemos perder de vista. Se o motorista está acostumado a essas tecnologias e é colocado em um carro sem elas, e em uma região diferente, a probabilidade de acidentes é muito maior.”
Furas ressaltou que a interação em um carro não ocorre somente com celular mas com relógio e sistema de navegação: “As distrações são muitas. Por isso precisamos de sistemas de assistência, como o Adas, para dar respaldo diante de uma distração. Antigamente a única distração era o rádio, nem ar-condicionado tinha. Precisamos de tecnologias que mitiguem essa questão. Para que isso não termine em tragédia”.
Flávio Cardoso, responsável pelos serviços conectados da Stellantis na América do Sul, destacou que a comunicação por voz é de extrema importância por reduzir distração, ampliar segurança e comodidade. Elencou também que o carro passa a ter diferentes oportunidades com telas maiores e melhores, assistentes virtuais e integração dos outros displays, que exploram e enriquecem a experiência a bordo, além de elevar sensação de conforto e conveniência.
Hoje o aplicativo do smartwatch é capaz de ligar o carro e climatizá-lo antes de chegarmos até ele. Além disso, com o wifi integrado, conecta-se até sete devices simultaneamente. Outro ponto positivo é o socorro inteligente, que conta com botão SOS no retrovisor.
Além disso o veículo entende sinais e reage a eles. Quando o airbag é acionado chamada automática é realizada porque nem sempre, na hora do pânico, o botão é acionado: “Temos, como um de nossos pilares, a responsabilidade de contribuir com a meta de zero acidente e zero morte”.
Cardoso disse que a Stellantis consegue, hoje, saber onde está o carro, quantas pessoas estão a bordo, o que aconteceu. E em caso de tentativa de furto notificação é enviada pelo aplicativo e, como resultado, mais de 94% dos veículos são localizados.
“Quando falamos da experiência que podemos construir citamos a relação de maior valor agregado que o software pode oferecer. Quando falamos em integrar os sistemas falamos em expandir as fronteiras. Nós vimos isto acontecendo no smartphone que está na nossa mão. Saímos do telefone em que nos preocupávamos com quantos minutos tínhamos para ligar, se era ligação internacional. Hoje isso é o menos relevante. O mesmo ocorre com o carro baseado em software, pois se tem a capacidade de integrar e de realizar serviços que podem trazer experiências em tempo real, prover informações que evitem problemas maiores, evitar rupturas nas experiências de forma não preventiva, mas preditiva.”
Cardoso citou que o objetivo é fazer com que a conectividade ressignifique o dia a dia das pessoas. E que o cliente tem isto como algo aspiracional, embora este seja um mercado em construção quando comparado aos de países mais desenvolvidos: “Com o que temos em termos de conectividade ninguém mais quer retrocesso”, assinalou, referindo-se ao fato de que o brasileiro tomou gosto por tecnologias de segurança e conectividade veiculares.
Flavio Sakai, diretor de eletroeletrônica da AEA, observou que existe uma lacuna na quantidade de veículos conectados, mas que, ao mesmo tempo, há uma tendência de aceleração, exatamente porque no mercado local os consumidores adoram tecnologia.
“O nível de conectividade é maior lá fora do que aqui. Vejam: aqui se inicia com 4G enquanto que, lá fora, com 5G. Mas esperamos que em dois ou três anos consigamos reduzir este gap introduzindo soluções em 5G.”
Quais são as regras para o uso dos dados do veículo?
Os dados do veículo são gerados, mas, de fato, não há regulamentação que estabeleça protocolos de acesso a este tipo de informação nem como ela deve ser ofertada e distribuída, seja para o governo ou para o próprio cidadão. Este é tema complexo e em discussão global.
Remete à resolução 717/2017, precursora do Rota 2030, que estabeleceu roadmap de itens de segurança a serem avaliados e, então, incorporados. Um desses itens é a avaliação da caixa preta dos veículos. É um tema em discussão, está na agenda regulatória para este ano, mas ainda precisa avançar.
Alejandro Furas, do Latin NCAP, apontou que a caixa preta com a gravação dos dados é obrigatória, mas o que preocupa é o compartilhamento de informações privadas do motorista em tempo real – e quase todas as montadoras já possuem esses componentes que estão sendo desenvolvidos e adotados nos carros.
“Analisar os dados tudo bem, mas compartilhar a informação do motorista de forma contínua e completa não. Em breve os carros terão câmaras, por exemplo, para a detecção de uso de cinto de segurança, de fadiga, de distração do motorista. Mas é preciso haver regras para acessá-los. A transmissão de 100% deste tipo de informações não nos agrada muito. O NCAP vai atacar essa questão.”
Flávio Cardoso, da Stellantis, concordou que é fundamental que as montadoras tenham esta responsabilidade, mas de forma estruturada: “A questão de segurança tem roadmap que vem sendo estruturado. Porque endereçar dados envolve, também, as questões de cibersegurança. Para isto funcionar bem é preciso que o papel de cada steakholder seja pré-definido. Não adianta haver movimento de um lado sem que tudo esteja concatenado. Sempre que falamos em conectividade é preciso ter um ecossistema bem estruturado”.
Como tornar o carro mais acessível sem abrir mão da evolução tecnológica de segurança e conectividade?
Nos últimos oito anos a conectividade avançou bastante. Houve adição de custos de hardware e novas plataformas. Mas, ao mesmo tempo, as fabricantes também se comprometem a otimizar estes itens a fim de que o preço do carro não sofra contínuos e expressivos aumentos.
“A partir do momento que você traz elementos que salvam vidas, reduzem riscos de segurança e proporcionam fluidez ao dia a dia dos clientes acredito que começaremos a romper barreiras.”
Cardoso justificou que a maioria das montadoras conta com soluções globais. Contudo, devido aos por ora baixos volumes, não conseguem trazer para cá as todas as tecnologias por barreiras financeiras na forma de custos: “A partir do momento em que se tem escala forma-se um círculo virtuoso. Só que este ainda não é um cenário comum a todos. Por isto é um grande desafio, embora a questão legislativa ajude a acelerar essas coisas”.
Hílton Spiler, diretor de segurança veicular da AEA, concordou que é necessário ganhar escala para reduzir preços porque se trata de tecnologias que demandam bastante desenvolvimento e são muito intrusivas, envolvem atualização constante de hardwares e softwares: “Quando há utilização da mesma tecnologia em várias plataformas é um fator que pode ajudar, assim como se um mesmo equipamento for adotado por diversas montadoras. Isso seria capaz de reduzir o preço da tecnologia”.
Ajudaria, segundo Spiler, não só para trazer a um valor mais justo como, também, para reduzir o atraso do Brasil frente à Europa, mesmo com sistemas de ESP e ABS: “Acredito que estamos acelerando com sistema de detecção de visibilidade traseira ou de identificação de objetos na traseira dos veículos”.
Cardoso ponderou que a construção de agendas com parceiros demanda evolução contínua: “Pensamos muito na escala de hardware, mas o mundo conectado traz outros potenciais desenhos. Há série de elementos novos. Temos de abrir a cabeça. Talvez a construção de parcerias dependa da cocriação que existirá com players tradicionais do mercado, que são os competidores. Mas, para ter relevância no business, se tivéssemos todas as montadoras ou todos trabalhando em um mesmo desenho ou modelagem única aquilo se tornaria viável”.
Como ampliar os testes de segurança e incluir todos os modelos disponíveis no mercado?
Enquanto itens de segurança e conectividade não são massificados Alejandro Furas, do Latin NCAP, afirmou que o ideal seria que sua ONG testasse tudo o que está no mercado. No entanto, infelizmente, a entidade sem fins lucrativos conta com recursos limitados e pode pagar por poucos carros por ano. Mas, a fim de não limitar o trabalho, contou que são aceitas tanto doações como sugestões para testar mais veículos, sejam do governo ou de empresas privadas, a fim de não limitar informação aos consumidores.
“Formas de mudar essa realidade são, por exemplo, que grandes frotistas exijam que seus carros sejam testados pelo Latin NCAP, ou que haja programa de etiquetagem obrigatória do governo, assim como ocorre em países da Europa, em que há acordo de cavalheiros para que todos os carros lançados passem antes pelo Euro NCAP.”
Ou, ainda, que o governo pudesse exigir que fossem testados carros que possuem maior popularidade, uma vez que o critério da Latin NCAP é sempre testar a versão mais básica. E isso em toda a América Latina.
Sobre a possibilidade de as montadoras retirarem itens de segurança avançados a fim de baratearem os veículos e ofertarem novos carros Furas disse não concordar com o fato de que um carro de entrada tenha de ser menos seguro: “A configuração do carro é uma decisão comercial da montadora. Se ela decidir tirar itens de segurança para baratear o carro precisa voltar a testá-lo. A segurança e a saúde dos brasileiros não é algo negociável. A montadora terá que economizar em outras áreas”.