Há anos as montadoras promovem medidas e investimentos internos para minimizar sua dependência da água fornecida por companhias de saneamento. Seja por redução de custos ou real preocupação com o meio ambiente, ou ainda ambas, essas ações reduziram o consumo de água nas linhas de montagem e áreas administrativas e blindaram, de certa forma, as companhias de possíveis problemas em momento como o atual, de séria ameaça de falta deste recurso natural.
A princípio a restrição hídrica – termo cunhado por governantes para se referir a um eventual racionamento de água nos estados da região Sudeste – não é uma preocupação no chão de fábrica: nenhuma das quinze montadoras consultadas pela reportagem da Agência AutoData considera a eventualidade de interromper a produção devido a problemas no abastecimento hídrico. Mas nem por isso deixaram de intensificar as campanhas internas para a redução de consumo.
Em sua última coletiva à imprensa a Anfavea divulgou dados colhidos com suas associadas que indicam redução de 29% no uso de água por veículo produzido de 2008 a 2011, de 5,5 m³ para 3,9 m³. O presidente Luiz Moan estimou que esse índice provavelmente foi reduzido ainda mais de lá para cá e prometeu para breve a divulgação de dados mais atualizados.
Na Honda, por exemplo, toda a água de consumo usada nas áreas administrativas e banheiros vem de poços artesianos do terreno da fábrica de Sumaré, SP. A água de uso industrial é captada do rio Jaguari e retorna ao meio ambiente depois de passar pela Estação de Tratamento de Efluentes localizada nas dependências da companhia.
“Na área de pintura a água é usada, tratada e retorna ao processo”, explicou Otávio Mizikami, diretor de produção da fábrica. “Há anos a Honda incentiva o uso racional da água e nos últimos meses aumentamos as campanhas internas. Tomamos também pequenas medidas, como a instalação de novos hidrômetros que fazem aferimento individual do consumo da água e pudemos identificar possíveis economias em algumas áreas”.
Mizikami cita como exemplo a regulagem das torneiras automáticas do banheiro: a Honda identificou que poderia reduzir o tempo médio de abertura e fechamento da vazão da água e, com isso, evitar o desperdício. “São pequenas ações que, conjuntas, podem reduzir bastante o consumo.”
Por sua vez a Iveco adotou no primeiro trimestre do ano passado um sistema que permite reduzir pela metade o uso da água necessária para o pré-tratamento de cataforese na pintura em sua fábrica de Sete Lagoas, MG, gerando economia de mais de 23 mil m³ por ano – o equivalente a nove piscinas olímpicas. Os sprays, que antes usavam água virgem, agora são alimentados com água reutilizada do próprio processo, sem influenciar na qualidade.
Desde setembro os jardins da unidade são irrigados com água de reuso, que passam por tratamento de efluentes e geram uma economia de 17,7 mil m³ por ano. Outros 20 milhões de litros por ano são economizados a partir da adaptação de uma rede para retornar a água utilizada nos testes semanais do tanque de armazenamento de água industrial.
Em Sorocaba, SP, onde a Iveco opera um Centro de Distribuição de Peças, foram investidos R$ 1,5 milhão para instalar um sistema de reutilização de água. A economia chegou a 30% do consumo. Também foi instalado um sistema de captação e contenção das águas da chuva, com um tanque capaz de armazenar 6 milhões de litros.
“Ter uma estrutura sustentável nos projeta no mercado com valores ambientais e conceitos de responsabilidade que são essenciais e valorizados pelos nossos clientes. Hoje economizamos 47% de energia elétrica e investimos em uma estrutura de poços artesianos que garante autossuficiência do Centro de Distribuição de Peças, sem necessidade de contar com o abastecimento da rede pública. É assim que agregamos a responsabilidade ambiental em nossa rotina de trabalho”, disse o diretor de operações do centro, José Roberto Manis.
A fábrica da Fiat em Betim, MG, é praticamente autossuficiente, ao recircular 99% da água em sistema próprio de reuso. O Complexo de Tratamento de Efluentes Líquidos foi construído em 1998 e modernizado em 2010, combinando duas tecnologias que garantem a qualidade do processo: sistema de osmose reversa e de MBR, de membranas.
Cristiano Felix, gerente de meio ambiente, saúde e segurança do trabalho da FCA para a América Latina, explicou que a tecnologia MBR funciona como um filtro que deixa passar pelas membranas apenas água e alguns íons e moléculas de baixo peso, barrando resíduos sólidos e eventuais bactérias. A osmose reversa, por sua vez, funciona como uma membrana semipermeável que absorve o sal e componentes nocivos à saúde humana.
“Diariamente monitoramos os parâmetros do efluente tratado em um laboratório próprio, acreditado de acordo com as normas da ISO 17025, que faz o controle de todo o processo de tratamento para verificar sua eficiência e qualidade. Desde o ano passado investimos R$ 4 milhões para ampliar ainda mais esse índice de recírculo. Nosso objetivo é eliminar a captação da água da rede pública para uso industrial.”
Nas áreas administrativas e nos banheiros toda a água já vem da ETE. “Todos os banheiros da fábrica também possuem torneiras com sensores que controlam a saída de água, para economizar.”
O executivo revelou ainda que a companhia promoveu nas últimas semanas uma força-tarefa para reduzir perdas. “O resultado foi surpreendente: identificamos oportunidades que deverão economizar 10 milhões de litros de água por mês, equivalente ao consumo de 71,5 mil pessoas por dia.”
PRODUÇÃO GARANTIDA – O gerente da FCA não enxerga cenário de interrupção nas linhas de montagem por falta de água. Segundo ele as empresas que investiram em gestão hídrica com planejamento de longo prazo estão preparadas para enfrentar a situação atual.
“É o caso da Fiat. Encaramos a gestão hídrica como um investimento e não como custo, pois traz impactos diretos para a perenidade do negócio. Em 2010 investimos mais de R$ 12 milhões para melhorar o tratamento de nossos efluentes, ampliando o índice de água recirculada de 92% para 99%. No ano passado recuperamos esse investimento com a economia de toda a água que deixou de ser captada em quatro anos”.
Mizikami, da Honda, afirmou não ver risco de parada nesse momento e o mesmo ocorre na Scania: segundo porta-voz, “o uso de água da rede só é necessária quando o consumo é maior do que a capacidade dos poços artesianos. Estamos acompanhando de perto os desdobramento da crise hídrica e se houver necessidade de tomar alguma ação específica, estaremos preparados”.
O abastecimento na fábrica de São Bernardo do Campo, SP, acontece por meio de três poços artesianos que garantem a autonomia da produção, sem depender do fornecimento da rede. Além disso, a Scania possui três reservatórios e duas torres elevadas que garantem uma autonomia de até duas semanas, usando como base os níveis de produção de 2014.
Os processos de produção representam cerca de 27% da água consumida, enquanto 68% estão diretamente ligados ao consumo de utilidades, como restaurante, sanitários, etc. A diferença está na reserva nas tubulações e tanques subterrâneos, dentre outros. Em 2014 para cada veículo produzido a Scania consumiu cerca de 30% da água que era consumida em 1998.
ABCD PAULISTA – Berço da indústria automotiva brasileira, a região do ABCD, que concentra grandes fábricas de veículos, pode passar por racionamento de água nos próximos meses, segundo indicação do governo do Estado de São Paulo. Como as montadoras fazem a lição de casa há anos, não deverão sofrer muito impacto.
A Ford alcançou com dois anos de antecedência suas metas de redução global de consumo, estabelecida desde 2000. De lá até 2013 a companhia cortou em 61% o consumo em todo o planeta, ou mais de 10 bilhões de litros. A fábrica de São Bernardo do Campo contribuiu com a meta com medidas como a instalação de torneiras com fechamento automático nos banheiros e parte da água usada é captada por meio de poços artesianos. Agora a companhia estabeleceu redução de mais 2% para os próximos anos.
Segundo Rogelio Golfarb, vice-presidente de assuntos corporativos, a montadora busca constantemente soluções para reduzir o consumo. “Estamos estudando em caráter de urgência a instalação de um sistema completo de reuso da água na fábrica de São Bernardo do Campo. Atualmente algumas áreas já possuem esse sistema.”
A fábrica da Volkswagen Anchieta, também em São Bernardo do Campo, conta com uma parceria com a Sabesp em que a fábrica envia efluentes domésticos e industriais tratados à Estação de Tratamento de Efluentes do ABC, na região de São Caetano do Sul, SP. Lá, esses efluentes recebem um novo tratamento e a Sabesp, então, retorna parte deles às unidades industriais da região.
Por sua vez a Toyota recorda que foi condecorada com o prêmio Fiesp de Reuso e Conservação de Água, graças a medidas que garantiram economia de 41 mil m3 de água/ano em suas fábricas em São Bernardo do Campo, Sorocaba e Indaiatuba, ou o equivalente a cerca de 1,4 mil caminhões-pipa. De 2013 a 2014 a fabricante conseguiu diminuir, novamente, o índice de consumo de água de 2,81 m3/veículo para 2,12 m3/veículo.
A Mercedes-Benz informou que utiliza práticas de uso racional de água desde 2000. Essas medidas permitiram à empresa uma redução no consumo específico por veículo de cerca de 60% neste período, até 2014. A busca constante de alternativas para economia de água é meta corporativa.
Procurada, a General Motors informou em nota que “neste momento não comentará sobre o tema”.
SEM RISCOS – Instaladas na região sul-fluminense, MAN Latin America e Nissan não enfrentam problemas de abastecimento. Porta-voz da fabricante de caminhões afirmou que todo o abastecimento da unidade é feito por poços artesianos desde o início das instalações.
Com a fábrica inaugurada no ano passado, a Nissan informou que estuda medidas para se preparar caso surja algum problema. Sem revelar pormenores, porta-voz destacou que já existe em operação um sistema de reuso da água da unidade.
No Sul do País, a BMW afirmou que acompanha a situação hídrica nacional e seus possíveis desdobramentos. A fabricante de origem bávara garantiu que as operações produtivas em Araquari, SC, não sofrem qualquer impacto no momento.
Por sua vez a Audi afirmou que a crise hídrica não afetará os planos da companhia no Brasil. “O cronograma de produção da Audi no Brasil está mantido, com o início da produção do A3 Sedan no segundo semestre deste ano e do Q3 no primeiro semestre de 2016 em São José dos Pinhais”, informou em nota.
No Centro-Oeste, a Mitsubishi tem poços artesianos dentro da unidade em Catalão, GO. Segundo porta-voz a empresa faz uma série de campanhas de conscientização junto aos funcionários, além de contar com sistema de captação e armazenamento da água da chuva e estação de tratamento de efluentes industriais.
Também em Goiás a Hyundai Caoa, de Anápolis, informou contar com “estação de tratamento eficiente e que contribui significativamente para as necessidades diárias”.
De volta a São Paulo, âmago da crise hídrica, a Hyundai Motor Brasil informou que não há alteração no cenário de captação de água na fábrica de Piracicaba, SP, com relação ao ano passado. No processo produtivo o sistema de uso de água é, em sua maioria, do tipo fechado, ou seja: a mesma água captada circula pela fábrica, sem retornar ao meio ambiente.
Para outras atividades que demandam captação, a Hyundai reduziu praticamente a zero a coleta a partir do rio Piracicaba e passou a comprar água de outras fontes. Com essas medidas, a empresa não prevê redução do ritmo produtivo, operando regularmente em três turnos, de segunda a sexta-feira.
FORNECEDORES – As preocupações com a gestão do uso de água descem também os degraus da cadeia, vez que a interrupção de produção em algum fornecedor pode afetar diretamente a linha de montagem de uma montadora. Por isso as companhias trabalham em conjunto a fim de evitar esse catastrófico cenário.
Felix, da FCA, revela que a companhia realiza intenso trabalho para apoiar os fornecedores na melhoria da eficiência de suas fábricas e eliminar desperdícios. “A Universidade Fornecedores Fiat, criada em 2007, oferece uma gama variada de cursos sobre temas como qualidade, gestão ambiental, melhoria contínua, liderança, entre outros. A questão do uso racional dos recursos naturais é um tema bastante presente nos treinamentos”.
Mizikami, da Honda, ainda não identificou problemas com fornecedores, mas acompanha de perto os movimentos. “Se houver algum problema crítico chegaremos e proporemos, em parceria, uma solução conjunta.”
A Ford começou a solicitar aos seus fornecedores que fazem uso intensivo de água e trabalham em regiões de escassez para relatar seu consumo de forma voluntária. O objetivo é trabalhar em conjunto para obter reduções e difundir iniciativas de sucesso no mundo, ajudando a reduzir a pegada ambiental de toda a cadeia de produção.
ENERGIA – O desabastecimento das represas e a falta de chuva trouxe na esteira outra preocupação, talvez mais grave, ao setor: a possível falta de energia elétrica. Como o Brasil tem sua matriz energética predominantemente hidroelétrica, a dependência do regime de chuvas e do nível das represas é direta.
A Volkswagen investe há anos nas construções de PCH, Pequenas Centrais Hidroelétricas, que já proveem cerca de um quinto da energia total utilizada em todas as operações industriais, segundo informou a montadora. Uma fonte próxima à empresa, entretanto, revelou à Agência AutoData que a falta de chuvas reduziu esta capacidade de geração própria no momento.
Golfarb, da Ford, disse que a companhia também toma medidas para reduzir o consumo de energia da fábrica do Taboão, em São Bernardo do Campo, como processo em curso de substituição das lâmpadas fluorescentes por equipamentos LED, mais econômicos. “Com os cuidados em nosso planejamento não vemos risco da produção ser afetada por falta de água ou energia.”
Independente da atual situação dos reservatórios, as montadoras mostram estar preparadas para um eventual cenário de racionamento de água. Os pedidos de ajuda do setor atualmente não são para são Pedro: o desejo outro, o de retomada da economia e de retorno dos consumidores às concessionárias.