Com o dólar acima da faixa dos R$ 3 ficou mais fácil para as fabricantes de veículos buscarem a ampliação do seu conteúdo local. Só que não basta o real desvalorizado para esse movimento ganhar força: os sistemistas sofreram um processo de desnacionalização ao longo dos últimos anos e hoje têm dificuldade para retomar compras internamente por causa dos problemas financeiros enfrentados por boa parte dos fornecedores Tier 2 e 3.
A Delphi, por exemplo, reduziu em 10 pontos o porcentual de compra de peças no Brasil e, segundo o presidente da companhia, Luiz Corrallo, “não há sinais de recuperação no curto prazo”. No caso da Bosch o índice de nacionalização teve redução de 7% a 8%, de acordo com o seu presidente, Besaliel Botelho.
Na avaliação de Corrallo, o câmbio sozinho não resolve: “De 2011 para cá houve desnacionalização da produção e não foi só pelo dólar mais baixo. Passamos a importar mais, principalmente da Ásia, pela necessidade de ter produtos com a mais alta tecnologia. Isso gerou um processo de verticalização dos sistemistas”.
Diante desse movimento por componentes importados a base fornecedora brasileira não acompanhou devidamente o avanço do setor e agora, segundo Corrallo, os Tier 2 e 3 têm dificuldades para investir em novas tecnologias, situação agravada com a queda da escala de produção: “O fundamental agora é proteger ao menos o que já se produz e o investimento feito”.
Na mesma linha de raciocínio, Botelho lembra que justamente na época em que o real esteve valorizado a evolução tecnológica no setor foi significativa, o que contribuiu para elevar as compras lá fora. “A tecnologia mudou e há risco hoje de quebradeira de boa parte dos Tier 2 e 3. O índice de nacionalização da Bosch, apesar da queda, ainda é elevado e estamos tentando segurar a base fornecedora. Mas o momento é delicado.”
O que mais preocupa os sistemistas atualmente é que não há tecnologia local para acompanhar os lançamentos, por aqui, de produtos mais evoluídos e já disponíveis lá fora. É nessa linha que a indústria automotiva caminha – daí o risco de mais importação.
É fundamental, assim, na avaliação de Botelho, que montadoras e fornecedores intensifiquem parcerias e negociem formas para que não haja prejuízos a ninguém e, assim, todos evoluam. Ele complementa: “É preciso share-pain [em tradução livre, dividir as dores]”.
DEBATE – Corrallo e Botelho participaram em março do Painel dos Sistemistas do Seminário AutoData Compras Automotivas, com a presença também de Tarcísio Costa, diretor de gestão de materiais da ZF, e Nelson Fonseca, presidente da TruckBus. Foi posição consensual no debate que a desvalorização do real não deve impedir a compra de peças e componentes no Exterior.
Segundo Costa, da ZF, mesmo com o dólar a R$ 3,20 compensa, em muitos casos, comprar lá fora. “Há outras questões em jogo, como o custo da energia, só para citar um item que pesa em nossas planilhas”. Mas apesar das dificuldades que limitam o aumento das compras internas, o executivo diz que a companhia hoje atende às regras do Inovar-Auto e mantém índice de nacionalização superior a 70% em seus produtos.
Na avaliação de Fonseca, da TruckBus, mesmo com a valorização do dólar o câmbio atual ainda não é competitivo por causa do chamado Custo Brasil. “Lá fora o petróleo está mais barato, uma vantagem que não chega aqui. Há produtos que ainda saem mais em conta importando do que comprando localmente.”
Para Fonseca, as empresas dos degraus mais baixos da cadeia precisam de apoio para investir: “Há necessidade de maior fidelização das montadoras justamente para que a base tenha confiança ao destinar recursos a novos projetos. O fornecedor pode ter até condições de inovar, mas sem compromisso de manutenção no longo prazo o investimento torna-se um risco. Se houver apenas disputa por preços, sem fidelização, ninguém vai investir”.
Também Botelho defende a necessidade das montadoras colaborarem mais para o processo de aumento de conteúdo local dos veículos brasileiros: “Em alguns casos elas deveriam mudar a especificação e, desde que o produto local atenda às suas necessidades, comprar o que há disponível aqui dentro. Facilitaria o fechamento de negócios locais”.
Na outra ponta, o presidente da Bosch avalia ser importante que os Tier 2 e 3 reconheçam que precisam de ajuda: “Estamos fazendo um trabalho com nossos fornecedores para preservar o que já temos. Não se pode perder investimentos”.
No caso da Delphi, de 60% a 70% de seus fornecedores têm operações globais, a maioria com presença física no Brasil. De acordo com Corrallo, já está difícil achar fornecedor só local: “Os Tier 2 e 3 passam por um processo de descapitalização e nós estamos ajudando os que estão em dificuldades. Mas é indiscutível que o futuro é preocupante. O automóvel envolve cada vez mais tecnologia e sem investimento não há como acompanhar esse desenvolvimento”.
CÁ E LÁ – A saída encontrada pela Eaton para evitar a desnacionalização de suas operações foi ampliar a sua base de fornecedores com opção de compras internas ou externas. Segundo Antônio Galvão, presidente para a América do Sul, a empresa continuou fazendo todos os seus produtos no Brasil, mas passou a abastecer suas linhas com mais componentes importados:
“No caso dos caminhões, ônibus e produtos agrícolas o conteúdo local é importante e, por isso, não mexemos em nossa produção final. Mas desenvolvemos opção de fornecedores externos para os itens que adquiríamos aqui e alternávamos a compra de acordo com a variação cambial”.
Galvão admite que com a alta do dólar a empresa passou a comprar mais internamente do que antes. Até porque as montadoras, segundo ele, têm buscado a nacionalização em toda a cadeia: “Mas além do câmbio precisamos competitividade sustentável ao longo do tempo. Tanto montadoras quanto sistemistas olham para frente e a previsibilidade é fundamental para nosso negócio, é a palavra-chave”.
Na opinião do presidente da Eaton a área econômica do governo trabalha atualmente com números coerentes e sem falsas expectativas, o que é positivo para a indústria. Para ele, a direção é correta: “A questão é ver se o governo tem força política para recolocar o País nos trilhos”.
As exportações já responderam por mais de 30% do faturamento da Eaton no Brasil, mas hoje o índice está em 15%. “Não perdemos mercado para nossos concorrentes, mas sim para outras filiais do Grupo. Para reconquistar os mercados que tínhamos não basta o câmbio: é preciso regras claras, que nos deem confiança para investir e fechar negócios de médio e longo prazo”.
Dentre as mudanças recentes que afetam a confiança no País, Galvão cita o caso do Reintegra, cujo índice de crédito a ser apurado aumentou e depois foi reduzido: “Isso destrói o planejamento e a credibilidade”.
INVESTIMENTO – Os executivos se queixam da instabilidade do mercado brasileiro, não só no que diz respeito às oscilações de volume, mas também nas questões legais e burocráticas. Isso, segundo eles, desvia possíveis investimentos em fábricas novas, linhas de produto ou ampliações de capacidade para outros mercados.
“A credibilidade da região hoje é baixa”, argumenta Botelho. “Há cinco anos tivemos que convencer a matriz de que o Brasil era a bola da vez. Hoje, quando chego na Alemanha, a palavra é decepção. São mudanças na legislação, nas regras do jogo, que afastam novos investimentos.”
Corrallo concorda: “É difícil convencer os acionistas a investir no mercado. Não é câmbio, não é volume, são as mudanças nas regras. A mudança na desoneração da folha de pagamento é um exemplo: a matriz olha para isso e comenta ‘assim não dá para confiar’. E como consequência muitos investimentos vão para o México ou para a Ásia”.
Tarcísio Costa, da ZF, disse ser difícil explicar hoje para a matriz o que acontece no Brasil: “Precisamos de uma ajuda do governo para restaurar a credibilidade”.
Com relação ao mercado interno todos preveem queda nas vendas de veículos este ano. Corrallo e Botelho projetam decréscimo de 10% a 15% em automóveis e comerciais leves e Fonseca e Costa, mais concentrados no segmento de caminhões e ônibus, acreditam em retração de 25% a 30% na área de pesados.
Já no que diz respeito às exportações há consenso de que a retomada será lenta. “Perdemos os canais nessa área”, comenta Corrallo. “O câmbio atrapalhou nossas exportações, porém não foi só ele que nos levou a reduzir presença no mercado externo. Em algumas coisas nós somos competitivos, mas a verdade é que o Brasil perdeu muitas oportunidades e a Ásia as aproveitou.”