A mudança já estava nos contêineres e seria da Itália para os Estados Unidos, mas em apenas duas horas o destino mudou. Os contêineres seguiriam agora para o Brasil, mais exatamente Pernambuco. Não necessariamente Stefan Ketter, vice-presidente mundial de manufatura da FCA, Fiat Chrysler Automobiles, precisaria morar no País, mas ao ser nomeado responsável pela construção do Polo Automotivo Jeep em Goiana, não titubeou: “Vir para cá foi uma decisão minha”.
E agora, com a fábrica finalmente pronta, qual será seu destino? “Não sei se a decisão de permanecer aqui será minha”. Brasileiro, pai alemão, o executivo nasceu em São Paulo há 56 anos, formou-se engenheiro na Alemanha e consolidou sua carreira nos Estados Unidos e Itália. Chegou à Fiat em 2004 para comandar a área de qualidade.
Quase dois anos após chegar ao Brasil e com a fábrica pernambucana em operação, Ketter se diz satisfeito com o trabalho que desenvolveu. Afinal, o desafio era grande: sem tradição no setor automotivo e com várias deficiências em infraestrutura, muitos não botavam fé em Pernambuco. Problemas ainda existem, sim: “Seria ilusão dizer que não, mas estamos aqui justamente para resolvê-los”.
Nesta entrevista à Agência AutoData, Ketter fala do parque de fornecedores, da boa surpresa com a mão de obra local e de tudo que envolveu a construção do complexo em área antes tomada por imenso canavial. O uniforme é idêntico para todos os funcionários, do operário ao diretor, inclusive o próprio Ketter quando vai à fábrica: “Não somos obrigados a usar, mas gostamos. Todos querem usar. O importante é que o uniforme tem a marca em cima, que é Jeep. Isso tem seu valor, o de levar a marca no peito”.
Como foi receber o convite para construir uma fábrica no Brasil?
Sediado na Itália, estava com as malas prontas para mudar para os Estados Unidos em junho de 2013 quando fui informado de que seria o responsável pela construção da fábrica em Goiana. Os contêineres com toda a minha mudança estavam prontos e seriam embarcados para os Estados Unidos, e em cerca de duas horas mudei o destino e mandei todos contêineres para o Brasil.
Então não necessariamente o senhor precisaria morar aqui?
Não. Foi uma decisão minha ficar em Pernambuco.
Nesta época o senhor já estava familiarizado com o projeto?
Estávamos trabalhando nele há muito tempo. Nossa equipe daqui estava toda empenhada e naquela época já estávamos na fase de terraplanagem. Aliás, o terreno cedido pelo governo do Estado serviu como uma luva para a fábrica: era absolutamente plano, facilitava nosso trabalho.
Neste período todo o senhor ficou mais na fábrica ou em Recife?
No começo ficava mais no escritório de Recife. Normalmente ia para Goiana na segunda-feira. Agora [então faltando duas semanas para a inauguração da fábrica] fico lá na terça, quarta, quinta, sexta… Tem muito trabalho que exige a presença física e é importante estar mais no campo do que no escritório. Acompanhar a linha, a limpeza, as instalações. As coisas só se resolvem quando a gente vê de perto, quando as tocamos com a mão.
A FCA apresenta o Polo Automotivo Jeep como inédito. Quais, de fato, são as inovações?
O nosso projeto já nasceu com um parque de fornecedores. Conversamos com eles quase que no mesmo nível de planejamento da fábrica. Entramos em pormenores sobre tudo. E não só da parte técnica: até Recursos Humanos entrou no debate. Todo o fluxo, os carrinhos que levam as peças, tudo foi estudado cuidadosamente dentro do conceito 360º. Pudemos conhecer melhor os fornecedores e planejamos com eles uma integração completa no complexo. Assim, reunimos vários e importantes diferenciais nessa fábrica com relação às demais.
A FCA arcou com algum custo da construção do parque?
Optamos por construir o parque de fornecedores, deixando para eles a parte de instalar as máquinas. Fizemos a casa e os fornecedores colocaram a cozinha, a sala de estar. E vivem lá dentro. Tudo foi estudado para termos a logística mais eficiente de peças chegando à produção. Como os fornecedores nasceram junto com a fábrica, eles já surgem alinhados aos nossos processos. Cerca de 40% das peças que utilizamos saem desse parque.
Qualidade é prioridade nesse processo todo?
Qualidade, flexibilidade e velocidade de produção. Podemos dizer que a prioridade máxima é qualidade. Mas é importante também dizer que o polo reúne as características básicas de uma fábrica flexível e expansível, preparada para crescer no futuro. Com seu layout enxuto e racional, o polo foi pensado para facilitar a rapidez de planejamento e a eficiência na solução de problemas.
Qual a capacidade instalada da fábrica?
A fábrica já está pronta para produzir 30 carros por hora ou 180 mil/ano. Na segunda etapa, a ser concluída em meados deste ano, poderemos atingir até 45 carros por hora, algo como 250 mil por ano.
E quando o complexo poderá atingir a capacidade plena?
Em 2016 já estaremos preparados para chegar a esse número.
E o volume projetado para este ano, qual é?
Este é um grande segredo. Depende do mercado. E não quer dizer que teremos ociosidade se a capacidade plena não for atingida rapidamente. Há uma curva, é sempre assim. Não utilizamos a capacidade instalada de um dia para outro. Como disse, a capacidade máxima deve ser atingida em 2016, mas podemos acelerar a linha conforme a necessidade, torná-la mais ou menos veloz, a depender do andamento do mercado.
Já está tudo funcionando em Goiana ou ainda há entraves?
Temos no parque doze edifícios, dezesseis fornecedores e dezessete linhas. Já está tudo em operação, mas não podemos dizer que sem problemas nesta fase inicial. Seria ilusão. Estamos aqui exatamente para resolver problemas. Nos últimos dias antes da inauguração ainda tínhamos pavilhões em processo de conclusão, dávamos os últimos retoques. Mas já estão todos produzindo. Tudo estará absolutamente concluído em mais um mês, até o encerramento de maio.
A gestão dos funcionários da fábrica e do parque é a mesma?
Há um alinhamento. Como dona dos edifícios a FCA faz parte de todo o processo de recursos humanos. Na gestão do condomínio falamos de todos os aspectos: admissão, energia elétrica, água, serviços, restaurantes, ônibus. Enfim, de tudo.
Algo que chama atenção no polo pernambucano é o fato de todos usarem o mesmo uniforme, do operário ao diretor. Esse seria mais um diferencial?
Em alguns segmentos industriais, como o de eletrônicos, é comum o trabalho uniformizado. Não é de todo inédito, portanto. Acredito que talvez o diferencial no nosso caso é que todos usam o mesmo uniforme.
Todos os diretores utilizam o uniforme, até o senhor. É uma diretriz da empresa?
Não tenho necessariamente de usar o uniforme, nem os demais diretores e gerentes. Mas a gente gosta, é uma decisão voluntária. Tem muita gente pedindo para utilizar o uniforme. Essa voluntariedade pode parecer estranha, mas mostra a força de trabalho. Se vê que é um diferencial do polo, todo mundo quer. O importante é que o uniforme tem a marca em cima, que é Jeep. Isso tem seu valor, o de levar a marca no peito.
Os métodos de produção do Polo Automotivo Jeep valem para outras unidades do Grupo?
Todas as empresas do Grupo estão programadas para operar no sistema WCM, World Class Manufacturing, mas em fases diferentes. É um sistema que se avalia, se audita. Em função dos resultados são dadas medalhas de bronze, prata e ouro. Pelos processos instalados e a qualificação o Polo Jeep já seria ouro.
O que ainda falta?
Para ser ouro precisamos comprovar dados históricos, portanto requeremos dois anos de análise, de comprovação que entrou no circulo virtuoso, de melhoria contínua e assim por diante. Por isso falamos em inglês gold ready – pronto para ser um gold, mas falta histórico.
Qual a importância do WCM no Grupo?
É um símbolo da integração Fiat Chrysler, da gestão conjunta. O WCM, que começou com a Fiat, foi transposto para a Chrysler no mundo todo e tivemos a grande vantagem de ter apoio do sindicato dos trabalhadores dos Estados Unidos, cujos representantes visitaram nossas fábricas na Europa e deram total suporte à proposta. Chrysler, Fiat e sindicato fazem em conjunto a gestão de uma academia, a academia de WCM. O sistema nunca foi colocado em dúvida.
Essa parceria com o sindicato existe em outros lugares?
Diria que é única: não conheço outro caso do sindicato de trabalhadores ser parceiro em manufatura.
Goiana já conta com um sindicato de metalúrgicos?
Há um sindicato estadual, com o qual temos ótimas relações. Eles já conhecem todos os nossos sistemas, a nossa moderna gestão de turnos e horários, com flexibilidade.
Como funciona essa flexibilidade?
Em uma fábrica projetada para trabalhar em três turnos pensamos em soluções diferenciadas como, por exemplo, encaixar o serviço de manutenção de forma que a planta não seja forçada a parar para esse tipo de serviço. Também há interação das pessoas que saem e entram nos turnos. Não são grandes coisas, mas são fundamentos que dão bons resultados operacionais e também geram satisfação dos empregados.
Em quantos turnos a fábrica está operando?
No momento em um turno. Acredito que em meados do ano começaremos o segundo.
A FCA escolheu construir uma fábrica em um Estado sem tradição automotiva. Não temeu por dificuldades na qualidade da mão de obra?
No início, de fato, foi uma grande preocupação, mas o que vemos hoje é uma equipe muito bem qualificada e orgulhosa do que faz. Trabalhamos com escolas, incluindo o Senai, principalmente, além de treinamentos internos na área de processo e tudo o mais que envolve o Polo Jeep. Podemos dizer hoje que temos uma equipe sólida.
E a questão da experiência?
É realmente uma equipe muito jovem, sem vasta experiência, mas esta é injetada rapidamente. Quanto mais motivados os empregados são, mais abertos estão às novidades. A gente consegue integrar experiência. E todos já estão produzindo. O potencial de talentos é generoso. Já estamos colocando talentos novos em posições importantes, antecipando o que programávamos para daqui um ano e meio ou mais.
Soubemos que há no quadro de funcionários até pessoas que antes viviam da caça de caranguejo…
No processo de seleção não limitamos a contratação à qualificação escolar. Estávamos muito mais interessados no caráter e na personalidade da pessoa. Em algumas funções exigimos só o nível fundamental.
E como foi partir praticamente do zero e construir um polo automotivo completo onde antes era um grande canavial?
O fato de Pernambuco não ter nenhum vínculo maior com o setor automotivo, praticamente não ter empresas do segmento, nos deu a possibilidade de pensar uma fábrica de uma forma mais pura. No final das contas, o que parecia ser uma grande desvantagem tornou-se um fator positivo: tivemos a possibilidade de fazer o trabalho de forma integrada, com grandes ganhos logísticos e operacionais.
Por ser considerada a mais moderna fábrica do Grupo, Goiana servirá de modelo para outras?
Essa fábrica foi desenhada por nós a partir das melhorias que temos feitos por muitos e muitos anos em todas as nossas operações. Servirá de modelo para outras fábricas que poderão surgir e também para as existentes. Muitas pessoas de Betim estão trabalhando aqui e as que retornarem para a fábrica mineira certamente levarão as práticas que aprenderam aqui. Alguns ficarão e outros voltarão.
A infraestrutura externa está concluída?
Não, ainda faltam estradas e serviços. Algumas obras estão atrasadas ou em licitação. Uma obra importante, que é federal e ainda será licitada, é a do arco metropolitano, que ligará o Porto de Suape à Região da Mata Norte do Estado. Ela é primordial para o nosso projeto, pois contornará as cidades que hoje estão dentro da BR 101. Sua conclusão deve levar dois anos e até lá temos de sobrevier com as rodovias estaduais. Temos muito caminho para chegar ao nosso objetivo.
A missão do senhor termina com a inauguração?
Vir para cá foi uma decisão minha, mas a de ficar não sei se estará em minhas mãos.