Em épocas de maiores dificuldades, como a atual, o setor automotivo sempre demonstra grande capacidade de produzir não apenas veículos mas, sobretudo, mitos. Grandes mitos.
São as quase verdades. Algumas de alto poder explosivo à medida em que distorcem a realidade, levam a diagnósticos equivocados e, por decorrência, a soluções inadequadas.
Com frequência, por exemplo, nos últimos tempos, em particular nas chamadas mídias sociais, a interpretação e os efeitos da atual queda de vendas de automóveis, caminhões e ônibus – uma das mais pronunciadas que este setor já enfrentou – vêm sendo minimizados a partir das notícias de que novas fábricas estão sendo construídas e outras tantas inauguradas.
São duas realidades – queda acentuada nas vendas e inauguração de novas fábricas – que, de fato, aparentemente se contrapõe de maneira cartesiana. Dai, aliás, o perigo.
No atual contexto, as novas fábricas são apontadas como prova definitiva de que, apesar dos queixumes das montadoras aqui instaladas, o mercado brasileiro continuar atraindo grandes investimentos.
O problema de vendas estaria, então, localizado em apenas algumas poucas montadoras menos eficientes, que pararam no tempo, deixaram de investir, remeteram mais lucros para a matriz do que deveriam e agora, em consequência, não teriam como enfrentar os novos competidores.
Na verdade, as novas fábricas hoje em construção ou em fase de inauguração decorrem de decisões tomadas há, pelo menos, dois, três ou quatro anos.
Ainda na época, portanto, em que o mercado doméstico brasileiro de veículos era o quarto maior do mundo, à frente até da Alemanha, o maior da Europa. Mercado que, embora estivesse parando de crescer, não dava mostrar de que poderia estar para entrar numa derrocada com dois dígitos de tamanho, tal como hoje se verifica. E dois dígitos dos grandes.
É aqui que a quase verdade das duas realidades cartesianamente contrapostas assume sua dura face real: num cenário como o atual, de considerável capacidade ociosa, cada nova fábrica construída e inaugurada representa, necessariamente, um turno ou dois a ser fechado em algumas outras fábricas instaladas no País.
É na área do emprego, todavia, que esta dura realidade assume sua face mais madrasta: como as novas fábricas são bem mais automatizadas, cada novo emprego gerado em qualquer uma delas representa, muito provavelmente, dois perdidos na linha de montagem mais antiga cujos turnos estarão sendo encerrados.
Ou seja: descontado o mito, a quase verdade, o que sobra, de fato, é que cada nova fábrica hoje inaugurada representa não uma solução mas, sim, aumento da capacidade ociosa setorial e, portanto, agravamento do problema.
A festa de inauguração tem, é claro, de ser feita, à medida em que, ao menos para a região onde está instalada, a nova unidade industrial representará avanço de presente e, muito mais, de futuro. Mas sem perder a consciência de que, em algum outro lugar do País, a ressaca virá em seguida.
Outra quase verdade que tem aparecido com frequência, inclusive na chamada grande imprensa, refere-se ao fato de que algumas montadoras, notadamente as japonesas e coreanas, estão tendo de fazer até horas extras para atender a demanda, o que seria prova inconteste, também cartesiana, de que a crise não seria, então, assim tão pronunciada.
Mais uma vez, a tese é exatamente a mesma: a de que as montadoras mais antigas, em especial as ocidentais, pararam no tempo, deixaram de investir, remeteram mais lucros para a matriz do que deveriam e agora, em consequência, não teriam como enfrentar os novos competidores. Ninguém tem qualquer dúvida da seriedade, competência e qualidade das asiáticas. Mas o que mais lhes tem valido, neste momento, é o clico típico deste setor: Hyundai, Honda e Toyota são montadoras que acabam de colocar no mercado produtos – respectivamente HB20, HR-V e novo Corolla – que acertaram na mosca em relação aos desejos e aspirações do consumidor, inclusive no que diz respeito à qualidade de atendimento e de pós venda. E isto faz toda a diferença num momento de mercado mais difícil, como o atual.
Mesmo nas ocidentais as diferenças de desempenho são marcantes: General Motors, Ford e Renault, que estão em pleno processo de renovação de toda a linha, registram queda inferior ao mercado e, assim, avançam sobre as fileiras da Fiat e a VW que, todos sabem, já preparam o devido troco. E para breve.
Ou seja: descontado o mito e a quase verdade, também neste caso a dura realidade do mercado não é das asiáticas tomadas em particular, nem a das estadunidenses ou francesas e muito menos a da italiana ou a da alemã. Mas sim a fotografia que resulta da soma do resultado de todas elas. E esta é, hoje, infelizmente, uma pálida foto em branco e preto. Melhor, assim, desconsiderar a quase verdade e acreditar nisso.