Surge, enfim, boa pista para entender a causa da gigantesca desproporção entre a redução de mais de 20% nas vendas da indústria automobilística e a queda de menos de 3% no PIB.
É uma relação bem diferente da usual que, historicamente, no Brasil, costuma manter-se, no caso dos automóveis, na faixa de dois a três para um e, nos caminhões, de quatro a cinco para um. Seja para cima, seja para baixo.
Na base desta atual desproporção – conforme escancara a matéria “Vendas não caem em 2015, mas sim mudam de perfil”, do subeditor André Barros, publicada na edição de ontem Agência AutoData – está o fato de que as montadoras de automóveis e comerciais leves, em particular, enfrentam, hoje, na verdade, dois problemas diferentes e simultâneos de mercado.
Um é conjuntural. O outro, estrutural. E eles se cruzam e somam-se, o que potencializa seus efeitos sobre o ritmo de trabalho nas linhas de produção de carros e de autopeças.
O primeiro deles, o conjuntural, resulta diretamente das dificuldades políticas e econômicas do País, que têm reflexos negativos de monta no desempenho de todos os setores industriais.
O outro, o estrutural, decorre de característica quase única do setor automotivo, no qual o bem produzido passa por vários proprietários ao longo da vida útil. Trata-se da migração de parcela dos consumidores da base do mercado de veículos novos para o topo do de usados.
Rafael Marques, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, chama a atenção para o fato de que, de janeiro a agosto, na soma da venda de novos e usados, o mercado de automóveis e comerciais leves caiu menos de 3% em confronto com o mesmo período de 2014 – de 8,5 milhões para 8,3 milhões de unidades.
Isto aconteceu porque mais da metade da queda de 432,4 mil unidades na venda de novos foi compensada pelo crescimento, neste mesmo período, de 242,7 mil unidades negociadas de usados.
Na base da mudança, conforme mostra a matéria, está o desaparecimento do mercado da maior parte dos carros com preço de tabela de R$ 25 mil a R$ 30 mil. Atualmente, a maioria dos chamados carros de entrada tem seu preço bem acima de R$ 30 mil, já próximo dos R$ R$ 35 mil.
Ou seja: em resposta à mudança no perfil da oferta os consumidores trataram de buscar refúgio nos usados. Ou, mais exatamente, nos hoje denominados seminovos, veículos com dois a três anos de utilização.
Para toda a cadeia produtora, trabalhadores incluídos, as consequências desta mudança foram drásticas. Sem esta migração é bastante provável que a queda nas vendas das montadoras – e por decorrência da produção — tivesse se mantido bem mais próxima dos 5% a 10% inicialmente projetados para este ano. Com ela, a queda passa dos 20% e os estoques explodiram.
Os mais apressados podem deduzir que se a ganância das montadoras fez com que os preços dos carros de entrada fossem catapultados para cima, então elas merecem passar por todas as dificuldades que agora enfrentam.
Infelizmente não é bem assim. E o termo infelizmente se justifica porque, se assim o fosse, bastaria reduzir os preços dos carros de entrada e tudo estaria resolvido.
A questão, contudo, é bem mais complexa. Não é meramente conjuntural, e sim estrutural. Trata-se de mudança no perfil do mercado que pode ter vindo para ficar. Ou, no mínimo, para permanecer por bom tempo.
Acontece que elevação no patamar dos preços dos carros de entrada decorreu não apenas da vontade das montadoras. Resultou, por exemplo, também da incorporação, por lei, de airbags e ABS em todos os carros, o que gravou proporcionalmente mais os custos e os preços dos carros da base.
É incorporação que tinha de ser feita por tudo o que representa em termos de segurança. Mas é certo que representou aumento direto dos custos e, mais do que isso, obrigou a retirada de linha de carros que, de tão antigos, não estavam aptos a incorporar estes recursos.
Carros que, justamente por serem tão antigos, não tinham mais quaisquer amortizações a serem feitas e, assim, formavam a base da base em termos de oferta de preços baixos.
No início deste ano, além disso, conforme lembra Luiz Moan, presidente da Anfavea, o fim do ciclo de redução temporária do IPI também penalizou proporcionalmente mais justamente os carros equipados com motor 1.0, comum a todos os modelos de entrada.
A isto tudo se juntou o lado negativo da conjuntura: redução dos prazos de financiamento, maior seletividade no crédito, aumento das taxas de juros e redução do poder aquisitivo dos consumidores em razão do crescimento da inflação. Além, é claro, da maior insegurança com relação ao futuro gerada pelas demissões em massa.
Em conjunto, estes fatores acabaram literalmente expulsando os consumidores recém- chegados ao mercado de carros zero quilômetro, os frequentadores típicos desta faixa de entrada.
Na outra ponta, a dos carros usados, sobretudo os seminovos, o panorama era outro. Bem mais ensolarado. O aumento da qualidade dos veículos gerado pela maior competição nos últimos anos, de certa forma garante, hoje, que a compra de um modelo com dois a três anos de uso possa ser feita sem maiores preocupações. Em muitos casos ainda com garantia de fábrica.
Há ainda o fato de que, pressionadas pela queda das vendas de carros novos no varejo, muitas montadoras trataram de apelar para grandes vendas no atacado, sempre com descontos generosos. Carros que, agora, são rotineiramente ofertados quase novos no mercado de usados também em condições especiais, puxando para baixo os preços dos seminovos.
Além disso, pela mesma pressão da queda nas vendas de novos, montadoras passaram a lançar mão de toda sorte de promoções, o que forçou ainda mais para baixo do preço dos usados, em particular, o dos seminovos.
Houve, em síntese, nefasto cruzamento. A crise potencializou a migração. E a migração, por sua vez, potencializou a crise.
De concreto, existem, hoje, milhares de consumidores que saíram de casa dispostos a comprar carros básicos completamente despojados mas que rodam, agora, a bordo de carros usados maiores, mais confortáveis, equipados com vidro elétrico, ar-condicionado, bom sistema de som a até com razoável nível de conectividade. Não raro, com airbag, ABS e ainda na garantia.
Trazer este pessoal de volta para o mercado de novos – que é o que alimenta a linha de montagem das montadoras, garante encomenda para os fabricantes de autopeças e mantêm o emprego dos metalúrgicos – não será nada fácil nem rápido. O setor precisará bem mais do que um tapetinho de borracha de brinde e o mero cheirinho de novo.