De maneira absolutamente inesperada e de forma um tanto quanto atabalhoada, as vendas de automóveis e comerciais leves, caminhões, ônibus e máquinas agrícolas despencaram neste 2015. Voltaram aos números que eram registrados na segunda metade da década passada.
A surpresa foi tão grande que ainda em meados de setembro a Anfavea preparava mais uma revisão das projeções de vendas e de produção, a segunda do ano, formalizada agora, no princípio de outubro. E novamente para baixo.
Com queda superior a 20% nas vendas de automóveis, por volta de 30% nos ônibus e acima de 40% em caminhões, o mercado brasileiro, que chegou a ser o quarto maior do mundo, caiu para a sétima posição nesse ranking.
Com tudo isso o Brasil, quem diria, ao menos no que diz respeito ao setor automotivo, retrocedeu a ponto de voltar aos tempos em que tinha que se contentar em exibir o título de País do futuro.
Roberto Cortes, presidente da MAN, garante que, como os fundamentos básicos do País permanecem os mesmos, não resta dúvida de que o futuro continua tão promissor quanto antes: “A questão é que, agora, não dá mais para saber em qual mês este futuro começará”.
Nem em qual mês e, a rigor, nem em qual ano. De fato, com o atraso na definição do ajuste fiscal do governo federal – tido como indispensável para o saneamento da economia – até meados de setembro, pelo menos, ainda não havia consenso nem mesmo sobre as projeções para os meses finais deste ano. Quanto mais para 2016.
“Está mais fácil, hoje, projetar 2020 do que o próximo ano”, definiu Cledorvino Belini, presidente da FCA.
De forma geral todos sabiam que este não seria um ano fácil. Mas todos esperavam que, depois de um primeiro trimestre negativo em função justamente do aguardado ajuste fiscal, viria um trimestre de equilíbrio e, na segunda metade do ano, o início da retomada. No fim das contas o resultado de 2015 representaria empate técnico com relação ao ano passado ou, na pior das hipóteses, queda de até 5%. Tudo muito administrável.
Seria, em síntese, um ano morno. Daquele tipo que Paulo Butori, presidente do Sindipeças, define como boi com abóbora, refeição sem grande sofisticação mas que, ao menos, sustenta. O que não estava no radar de qualquer empresa era que, neste ano, o primeiro do segundo mandato da presidente Dilma Rousseff, crise política de bom tamanho se somaria à econômica e tornaria muito difícil e demorada a definição dos termos do ajuste fiscal.
Do ponto de vista das expectativas o ponto de inflexão para baixo foi agosto. Havia certo consenso de que o resultado do oitavo mês seria positivo com relação ao anterior, abrindo as portas para que o segundo semestre fosse melhor do que o primeiro e reduzisse os elevados estoques das montadoras e dos concessionários.
“Como isto não aconteceu ficou evidente que, para este ano, restava apenas salvar o maior número possível de empregos”, comentou logo no início de setembro Rafael Marques, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, antecipando que até o fim do ano pretendia ter mais da metade da sua base já protegida por acordos envolvendo o PPE, o Programa de Proteção ao Emprego.
SEM DESALENTO – Mesmo em meio a tantas incertezas, todavia, as projeções para 2016 dos executivos das principais empresas do setor, ao contrário do que se poderia imaginar, não mostram desalento.
Em todos os segmentos – autos, caminhões, ônibus e máquinas agrícolas – é unanime a interpretação de que o setor não vive uma crise com o formato da letra L mas, sim, mais uma vez, uma fase em V.
Ou seja, não se trata de uma mudança definitiva para um patamar menor de mercado. Mas, sim, de um batevolta, como tantas vezes já aconteceu nas décadas passadas. Belini contabiliza: “E sempre com um retorno para um patamar acima do anterior”.
Na área de caminhões, por exemplo, apesar da queda este ano para cerca de 75 mil unidades comercializadas o mercado brasileiro, afirma Philipp Schiemer, presidente da MercedesBenz do Brasil, continua com potencial de 150 mil a 200 mil unidades por ano: “É só uma questão de tempo”.
Para o segmento de automóveis quem crava a aposta é Luiz Moan, presidente da Anfavea. Para ele a baixa relação automóvel por habitante fora dos grandes centros garante que o mercado brasileiro continue com potencial para chegar a 5 milhões de unidades vendidas por ano:
“Depois do resultado deste ano pode até ser que demore dois a três anos a mais do que estávamos imaginando”, diz ele. “Mas não resta dúvida de que, em um ou dois anos, entraremos em fase de crescimento anual constante”.
E é justamente em razão da manutenção destas projeções de médio e longo prazos que, de forma geral, os investimentos estão preservados. Algumas montadoras, como a General Motors, chegaram até a dobrar a aposta, de R$ 6,5 bilhões para R$ 13 bilhões em cinco anos. E o anúncio foi feito em meados do primeiro semestre, quando o mercado já estava desabado. Vale a observação do presidente Santiago Chamorro: “Precisamos manter nossa capacidade de competição para quando este mercado retomar”.
Na verdade a manutenção dos investimentos tem razões bem concretas de ser. Com a capacidade de produção já adequada a um patamar mais elevado os investimentos que agora vêm pela frente são, em sua esmagadora maioria, voltados para aumento da qualidade e da produtividade das fábricas mais antigas e, sobretudo, para o desenvolvimento e lançamento de produtos.
É o ciclo típico do setor automotivo, mesmo num mercado tão difícil. Ford, General Motors, Honda, Hyundai, Renault e Toyota, todas com lançamentos relativamente recentes, aumentaram sua participação às custas, sobretudo, de Fiat e VW.
Pois bem. Fiat e VW são justamente as duas montadoras que têm mais lançamentos programados para os próximos dois anos, o que vai inverter o processo e forçar, na sequência, a reação das demais. É como andar de bicicleta: quem parar de pedalar… cai.
NACIONALIZAÇÃO – Na área de autopeças o que garante a manutenção dos programas de investimento é a forte desvalorização do real frente ao dólar este ano, o que obriga às montadoras apressar ainda mais os programas de nacionalização que já encaminhavam em razão do Inovar-Auto.
Trata-se, sem dúvida, de mais uma porta que se abre para as empresas de autopeças e componentes com fábricas instaladas no País, sobretudo as sistemistas. Porta aberta que ninguém quer entregar de mão beijada para os concorrentes.
Com relação especificamente ao curto prazo ninguém espera a rápida recuperação, em 2016 ou mesmo 2017, de todo o terreno perdido este ano. Mas, em compensação, há certo consenso de que é muito provável que o fundo do poço já tenha sido alcançado. Ou, pelo menos, que ele já esteja muito próximo.
A dúvida é colocada por Rogelio Golfarb, vice-presidente da Ford América do Sul: ”As vendas no atacado ainda estão elevadas. E isto ainda pode ter reflexos negativos no futuro”.
Em termos práticos, de qualquer forma, o que fica para o ano que vem, excetuando-se esta observação de Golfarb, é projeção de relativa estabilidade, com a média diária de vendas e de produção de veículos talvez até apresentando algum crescimento frente a 2015, ao menos nos meses finais do ano.
Moan especifica que, antes da frustração de agosto, a projeção com a qual se trabalhava era de inflexão da curva, desta vez para cima, no segundo trimestre de 2016. Agora o que se espera é que isto aconteça no terceiro ou, eventualmente, até no quarto trimestre: “Mas é um movimento que, com certeza, acontecerá em algum momento do ano que vem.”
Depois da total imprevisibilidade deste ano a projeção de certa estabilidade para 2016 não deixa de ser alentadora. Sobretudo com viés de alta, ainda que, talvez, apenas no segundo semestre.
Afinal, tal como define Chamorro, o mais difícil de administrar em 2015 foi a surpresa, a rapidez com que o quadro se deteriorou: “Quando voltamos das férias, em janeiro, o País era outro”.
Neste contexto 2016 tem boas possibilidades de ser, de fato, se não melho pelo menos mais tranquilo do que este ano. Bem mais tranquilo.
Acontece que o inesperado retorno, em 2015, aos números do fim da década passada acabou forçando o setor a dar uma boa arrumada na casa. E não eram poucas as distorções que haviam sido acumuladas depois de anos e anos de crescimento constante.
No lado das montadoras o foco tinha sido fechado exclusivamente no mercado doméstico. Na esfera dos sistemistas e demais produtores de componentes quase toda a capacidade de produção estava voltada ao atendimento exatamente das montadoras.
TRABALHO – E mesmo os trabalhadores, apoiados na situação de pleno emprego, também eles tinham se acostumado a reajustes de salários bem acima da inflação, PRLs de vários salários e total estabilidade.
Este ano, forçados pelas circunstâncias, todos tiveram que começar a colocar ordem na casa. Inclusive os concessionários que, agora, já se atrevem até a pensar, de verdade, em oficinas multimarcas para atender grupos econômicos que hoje já formam a maioria do setor, em lugar das antigas empresas familiares, como avalia Alarico Assumpção Jr., presidente da Fenabrave.
Os fabricantes de componentes, de seu lado, já repartem, hoje, seu faturamento por montadoras, mercado de reposição e exportações, o que lhes garantirá, já em 2015, fechar o ano com quedas de faturamento muito menores do que as das montadoras.
E também no que se refere às montadoras, apoiado no aumento da competitividade internacional gerada pela rápida e marcante desvalorização do real neste ano, o presidente da Anfavea não tem economizado viagens ao Exterior em busca de novos acordos de livre comércio fora das fronteiras do combalido Mercosul.
Moan já adianta, além disso, que, mesmo que as vendas se mantenham em torno de 10 mil unidades/dia, a produção cairá nos meses finais do ano. Objetivo: entrar em 2016 com estoque adequado ao novo mercado e, assim, sem tanta necessidade de recorrer às vendas no atacado e promoções.
Neste contexto, por mais duro e difícil que este ano esteja sendo – e ele está, de fato, muito duro e difícil –, as empresas do setor têm boas possibilidades de sair desta crise melhores, mais eficientes, mais equilibradas e provavelmente mais rentáveis.
Isto não anula, contudo, o alerta que vem de Marques, do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC: “O ajuste fiscal não pode ser um fim em si mesmo”. O sindicalista lembra que os acordos de PPE que agora estão sendo fechados têm validade de até um ano. Sendo assim, ao menos no que diz respeito à manutenção dos empregos, em 2016 apenas empatar com este ano não será suficiente: “Algum crescimento será fundamental”.