Quando, em 1769, o francês Nicolas Cugnot – praticamente incógnito o inventor do automóvel – criou seu exótico veículo de três rodas capaz de alcançar a estonteante velocidade de 5 km/h certamente foi inspirado pelo senso próprio dos desbravadores utilitaristas, mas também motivado pela concorrência gerada nos tempos medievos pelo seu país com a Inglaterra, berço da primeira Revolução Industrial. Contudo, mal sabia ele, e nem tinha por que indagar-se a esse ponto, que estava trazendo ao ser humano, desde a primeira incursão da espécie na tecnologia da mobilidade, ou seja a roda, em 3500 AC, a sua conexão mais próxima dos desejos de liberdade e autonomia individuais.
Seria ele, sim, o carro, a representação perfeita da materialização desse sonho.
Cerca de século e meio após, por transferência iluminista da qual certamente Cugnot era herdeiro, Henry Ford torna viável a produção em massa do automóvel, franqueando-o a milhões de pessoas e construindo frota veicular mundial, hoje, ao redor de 1 bilhão de unidades, ou um carro para cada grupo de 7 viventes. E ainda é muito pouco, sabe-se e se proclama, apesar do quixotismo dos que o abominam como inimigo do meio ambiente, embora não o dispensem em sua locomoção.
O impacto social gerado pelo novo conceito de mobilidade da dupla Cugnot-Ford sempre será objeto de tratadistas e curiosos do comportamento humano, e sua dedicação em esquadrinhá-lo, visando à compreensão mais aprofundada de sua significância, tem dado tal poder aparente à indústria de carros, nesses seus 110 anos de atividade manufatureira de massa, de tal forma que, auto-impregnada de uma espécie de mandato divino de que se julga investida, se põe ela acima do bem e do mal quando escrutinada, hoje bem mais que antes, sobre os resultados dos seus desvarios e da sua dinâmica que, entende ela, exclusivamente a si diz respeito, com os cidadãos consumidores e os governos no papel de subservientes e coniventes.
Levados pelo imaginário da liberdade sem limites cidadãos consumidores a ela se rendem. Governos sempre ávidos de impostos, quase sempre à sombra de indisfarçáveis motivações demagógicas, proclamam como conquista própria um duvidoso agregado de postos de trabalho, cada vez em menor número, e a disponibilidade de uma tecnologia que por si apenas não teriam como construir dentro do terreiro nacional que dominam. E uma academia, a brasileira no caso, burocratizada e inerte, que parece se bastar com os títulos ocos que vicejam intramuros, sem se preocupar em provocar sua ampla interação com o meio operacional externo, ali onde as mãos untadas e mentes movidas pela insaciável fome de criar e inovar se misturam para realmente competir e prosperar.
E uma classe de executivos tupiniquins de alto nível desfibrados e doentiamente conformistas ao presenciarem, em sequência desrespeitosa, as posições locais de mando maior serem sempre ocupadas por expatriados para aqui enviados ao abrigo de uma visão preconceituosa e simplista das matrizes de suas empresas, alguns provenientes até de operações nem longinquamente comparáveis à complexidade e à expressão do mercado brasileiro e um ou outro trazendo o selo de novos trânsfugas, os que saltam de uma marca para outra sem contabilizar nenhuma conquista digna de nota em nenhuma delas. Seu agregado principal parece ser o conhecimento de um punhado de programas que nenhuma quarentena retém indefinidamente, arsenal que repartem com os novos senhores, sem inibições quaisquer, ao abrigo da volubilidade com que as montadoras parecem tratar hoje o desenvolvimento do seu próprio pessoal.
E, finalmente – e com que lástima isso se constata –, uma imprensa que se limita, com as exceções representadas pela voz e pela pena de personalidades cada vez menos encontradiças, a reproduzir as informações que os porta-vozes do dia lhe transmitem e a abrir escancaradamente suas páginas, éter e imagem, em colunas e tempos excepcionais, a opiniões dos representantes plenipotenciários estrangeiros sem que se lhes indague questões incômodas ou fora do contexto de conveniências em cima das quais as matérias trafegam.
Os últimos anos têm desvestido, para o público mundial, o comportamento simplesmente aético com que algumas montadoras de ponta e, em alguns casos, fornecedores de linha de frente, estão se desincumbindo de suas responsabilidades quanto à qualidade dos seus produtos e serviços e, especialmente, com o cumprimento das regulações oficiais dos respectivos países que acolhem seus sítios de produção. São tão notórias essas marcas que mencioná-las seria tirar espaço do que aqui, um tanto canhestramente, este escriba eventual procura comentar.
Era inevitável que, por aqui, nesta já sexagenária colônia automotiva, sempre caracterizada por um tipo de mornidão bem tropical, nada contestatória e vexatoriamente receptiva, acontecesse, como amplamente noticiado tem sido nos últimos tempos, alguma coisa do gênero que demarcou os vergonhosos acontecimentos de que foram palco os centros automotivos de maior expressão mundial. O noticiário tem sido tão abundante e negativo que parece se amalgamar com um outro, que, progressiva e inelutavelmente, dia a dia, nos faz, a nós brasileiros, sentir o insuportável gosto da exaustão. Como a demonstrar confiança em que nossa atitude será sempre acomodatícia com relação às iniciativas dos exércitos automotores alienígenas, provindos dos dois lados do mundo, um dos mais importantes jornais da terra, em um dos dias como matéria de capa, divulga que montadora, hoje a mais imputada como praticante de cheating nos Estados Unidos, foi tomada de inesperado e pudoroso senso de reparação judicial em favor de patrícios nossos objeto da repressão de órgãos de segurança de Estado nos anos 60, com os quais aparentemente contribuiu em conluio com outras suas congêneres.
É necessário um esforço de razoável dimensão para imaginar que essa altruísta iniciativa seja um movimento de mero paralelismo com relação ao que ela, muito certamente, deverá empreender onde quer que atue no sentido de recompor sua arranhada imagem. Iniciativa de igual monta institucional, por outro lado, é bom que se recorde, ela não cumpriu no decurso daqueles mesmos anos tristes, quando foi alcançada homiziando criminoso de guerra em seu grupo de pessoal local, ainda que o tivesse feito por simples tributo à civilização afrontada pelo regime nazista.
Finalmente, para fechar com chave de ganga essa ação sempre descuidada da nossa imprensa, divulgando mas não criticando, vale referir notícia de que montadora de origem japonesa, com fábrica pronta para entrar em operação no Interior do Estado de São Paulo, desiste de fazê-lo por ora e até que horizontes econômicos mais favoráveis se vislumbrem por aqui. E quanto ao respeito à economia da região e às obrigações que ela certamente contraiu junto às diversas esferas públicas, relativas aos incentivos de qualquer ordem com que pode ter sido cumulada para instalação de sua planta?
Na mesma linha de indagação – não apenas no contexto de incentivos oficiais recebidos mas, muito mais grave e pernicioso à imagem de marcas cumpridoras dos seus deveres às leis do país que as abriga – ousa perguntar este comentarista por que outras marcas, incluindo aquela que foi a primeira a chegar no Brasil na segunda década do século passado, e agora conjuntamente imputada como envolvida em atos censuráveis de gozo de extensão indevida de incentivos, não vieram ainda a público e, com a força de comunicação de que são detentoras, trazer cabais explicações à população visando ao clareamento de sua imagem: por que ainda não?
Como ex-presidente da Ford Brasil e executivo que nela mourejou por 26 anos em companhia de um sem número de outros da mesma fornalha, e em mínimo respeito a todos os que sempre depuseram fé na imagem de uma empresa referencial a partir do seu próprio fundador, essa atitude da empresa, hoje, não é apenas estranha: é inaceitável.
Luiz Carlos Mello é advogado e foi presidente da Ford Brasil