São poucos, após quase meio século, os personagens pioneiros da indústria automobilística brasileira ainda na ativa. O general Aldebert de Queiroz, aos 83 anos, é um deles. Então tenente-coronel ingressou na Mercedes-Benz em 1959, saído da então Escola Técnica do Exército, hoje Instituto Militar de Engenharia, onde era chefe do curso de engenharia automóvel. A montadora, que agora completa 45 anos de Brasil, contou com os serviços de Queiroz por 28 anos.
Mais do que viver toda trajetória do setor Aldebert de Queiroz participou de um período heróico. Logo de cara, como assessor da diretoria de materiais da Mercedes-Benz, viu e enfrentou as dificuldades de produzir veículos sem um parque de fornecedores mínimo, para não dizer inexistente, que sequer conseguia garantir o fornecimento: “Não havia nem mesmo uma padronização da espessura do aço”.
Queiroz trabalhou diretamente com o mítico Alfred Jurzykowski, milionário polonês responsável, quase que por acidente, pela chegada da Mercedes-Benz aqui – “Era um homem dotado de visão industrial corretíssima”.
Presença constante nas reuniões da Anfavea e da Fiesp, o general predileto do jornalista Vicente Alessi, filho, diretor de redação de AutoData, recorda, com flagrante saudosismo, tempos em que o Brasil, no seu entender, contava com políticas industriais que garantiram a expansão da economia e da produção. E é exatamente à falta de diretrizes governamentais que credita as atuais dificuldades do setor automotivo.
AutoData – O senhor é um dos veteranos da indústria automobilística brasileira, acompanhou de perto a sua instalação, já como funcionário da Mercedes-Benz, que completou 45 anos.
Aldebert de Queiroz – A Mercedes-Benz foi fundada em 1956 e eu entrei em 1959. Formei-me engenheiro industrial de automóvel em 1951, no Instituto Militar de Engenharia, quando ainda não existia produção veicular aqui, Já pensava que o Brasil, pela sua extensão territorial, tinha que produzir veículos, eles seriam fundamentais para a locomoção e o transporte. E já acompanhava de perto essas idéias que começaram a surgir antes do governo de Juscelino Kubitscheck, inspiradas por Lúcio Meira, que já chefiava uma comissão de jipes, tratores e caminhões.
AD – Primeira correção histórica: a disposição de se ter uma indústria automobilística começa mesmo no governo de Getúlio Vargas.
AQ – Lúcio Meira integrava o Gabinete de Vargas e era chefe dessa comissão para incentivar tratores, jipes, caminhões. Mas não houve progressos. Quando Juscelino assumiu convidou-o para ser ministro da Indústria e do Comércio. O governo estava preocupado com a balança comercial e o item de importação que mais pesava eram veículos e peças.
AD – Quais os outros produtos que desequilibravam a balança?
AQ – Petróleo e trigo. Mas o automóvel superava os outros dois. Petróleo havia como resolver e trigo não. Já existia a Petrobrás, mas em termos muito mais modestos. O governo, em junho de 1956, resolveu convocar os importadores, que eram mais de quarenta empresas, e disse que se quisessem continuar a importar peças e veículos aqui teriam que assinar um compromisso de nacionalização. Deveriam aumentar o índice de nacionalização, em peso, 30% em 1956 para 90% num prazo de três anos e meio, ou seja, no fim de 1959. A maioria das empresas não assinou o compromisso. Já havia comentários, na época, que seria mais uma lei para não ser cumprida.
AD – E as empresas cumpriram?
AQ – Foi um compromisso que, surpreendentemente, teve cumprimento rigoroso. E olha que a nacionalização era em peso, muito mais rigorosa do que a nacionalização em valor, porque não há como tapear: peso é peso. De qualquer maneira Lúcio Meira reuniu novamente os fabricantes e propôs um novo porcentual que deveria ser atingido no fim de 1960. Dessa vez seria de 100% para os automóveis, com tolerância de 2%, ou seja, no mínimo 98%, e de 94% para os caminhões. Novamente todas cumpriram a meta.
AD – Esse crescimento do índice de nacionalização tão rápido tem ainda mais importância quando se sabe que, naquela época, o parque de fornecedores praticamente não existia.
AQ – Realmente existiam muito poucos fornecedores de autopeças, ainda assim de peças de reposição rápida, como escapamentos, e alguns de pistões. Mas peças de alta tecnologia não existiam.
AD – E como se conseguiu nacionalizar tanto em tão pouco tempo?
AQ – Com a demanda evidentemente apareceram os fabricantes. E as próprias montadoras orientaram esse crescimento, mostrando aos empresários nacionais o que se precisa ter aqui. Mas os investimentos foram dos próprios fornecedores.
AD – Como as montadoras identificavam quem poderia ser seu fornecedor naquela época?
AQ – Havia, obviamente, muito contato com o setor de indústria mecânica. E os próprios empresários percebiam o novo mercado e procuravam as montadoras.
AD – Como a Mercedes-Benz chegou ao Brasil?
AQ – É uma história longa. Foi por intermédio de Alfred Jurzykowski, um milionário polonês, que durante a guerra se transferiu para os Estados Unidos para fugir dos nazistas. Lá ele produzia chocolate e comprava cacau da República Dominicana. Depois de uma crise política dominicana veio ao Brasil atrás de matéria-prima. Ficou espantado com o pandemônio que era o transporte no Rio de Janeiro e logo imaginou que o Brasil precisava desenvolver seu transporte coletivo. Importou vários chassis curtos, que transformou em micro-ônibus. O sucesso das vendas fez com que ele fundasse a Distribuidores Unidos, empresa importadora. Pensou em seguida em produzir motores diesel aqui e assinou, em 1953, um contrato com a Mercedes-Benz, com quem já tinha relações comerciais na Europa, já que fora concessionário Daimler-Benz em Varsóvia.
AD – Só motores?
AQ – Inicialmente, sim. Mas logo refez o contrato para fabricar caminhões. Pelo contrato a Mercedes-Benz detinha 50% da empresa aqui e Jurzykowski o restante.
AD – E ele cuidava pessoalmente do comando da fábrica?
AQ – Sim, era o presidente. Era um homem de visão industrial corretíssima. Contratou aqui o pessoal de chão-de-fábrica e trouxe da Mercedes pessoal com o qual já tinha relacionamento. A maioria dos investimentos foi custeada por ele. A Mercedes entrava com a tecnologia.
AD – Isso já em São Bernardo do Campo?
AQ – A primeira fábrica era na Vila Maria, em São Paulo.
AD – E por que São Bernardo depois?
AQ – A cidade tinha um prefeito muito ativo, que criou condições para que essas indústrias se estabelecessem lá. Não era como hoje, em que os estados fazem guerra um contra os outros, não existia essa preocupação. Afinal, a indústria automobilística, naquela época, não era nada.
AD – Quanto tempo se levava para ir de São Paulo para São Bernardo?
AQ – Uns 30 minutos. O caminho já contava com calçamento. Hoje, claro, está muito melhor, mas em compensação o trânsito é muito mais carregado.
AD – Naquela época já se estudava a produção de um automóvel Mercedes-Benz no País?
AQ – Foi cogitado mas fomos contrários, porque entendíamos que o padrão do carro era muito alto para a produção nacional.
AD — Como se dá a saída de Jurzykowski da Mercedes-Benz?
AQ – A Mercedes-Benz precisava crescer e a Daimler-Benz pressionou Alfred a vender os 50% dele. Ele faleceu em 1968 e a família resolveu se desfazer do negócio.
AD – A produção, na época, era totalmente verticalizada.
AQ – A Mercedes-Benz produzia rigorosamente tudo.
AD – E era até difícil encontrar aço de qualidade e em quantidades suficientes…
AQ – A Companhia Siderúrgica Nacional produzia o que queria. A espessura da chapa não era padronizada, era uma bagunça total. Costumava ir pessoalmente à CSN para garantir um fornecimento de qualidade. E uma das primeiras funções que tive na Mercedes foi garantir o abastecimento de longarinas, porque só existia uma fabricante, a Fábrica Nacional de Vagões, de Cruzeiro, Tinha que ir lá e fazer amizade com os funcionários.
AD – O senhor ficou três décadas na Mercedes…
AQ – E era para ficar apenas dois anos: logo depois voltaria para o Exército. Com o fim do governo Kubitscheck o comando militar mudou. Quando me preparava para voltar Jânio Quadros renunciou e adversários militares meus voltaram ao poder. Já era coronel e passei para a reserva como general porque tinha ido à guerra.
AD – Quando a engenharia entrou na sua vida?
AQ – Quando voltei da guerra fiquei decepcionado com o regime, que não tinha nada a ver com os princípios democráticos pelos quais tínhamos nos empenhado na Europa. Acabei optando por ingressar na então Escola Técnica do Exército, hoje Instituto Militar de Engenharia, que acabara de criar um curso de engenharia automotiva.
AD – Por que o Exército resolveu criar uma escola de engenharia do automóvel?
AQ – Porque o Exército possuía muitos veículos naquela época, e tinha pouco pessoal. Não havia gente capacitada que entendesse de automóvel, até para comprar veículos. Um grupo de oficiais foi enviado para os Estados Unidos onde fez o curso de engenharia do automóvel e depois voltou para lecionar aqui.
AD – Muitos deles, provavelmente, acabaram trabalhando na indústria automobilística nacional.
AQ – A maioria continuou no Exército. Alguns fundaram empresas, até de autopeças, e outros foram para a Fábrica Nacional de Motores.
AD – A indústria automobilística nacional tem pouco de nacional hoje, bem diferente dos primeiros tempos.
AQ – Isso é recente, porque os últimos governos não tiveram política industrial. O produto brasileiro custa caro por causa dos altíssimos juros, da falta de apoio. O Brasil, por exemplo, importa material de defesa que não recolhe imposto na importação. O carro nacional paga 25% de IPI. A falta de política industrial está arruinando a indústria nacional. Não encaro a empresa multinacional como empresa estrangeira, mas nosso governo, em termos de política industrial, é um fracasso. Agora mesmo todas as empresas estão com veículos encalhados aí. Por que? Por causa dos juros. Encalhou o veículo, o que acontece? A empresa despede.
AD – E se voltarmos 45 anos atrás é perceptível que o empresariado nacional é capaz de vencer desafios.
AQ – Verdade. E foi a indústria automobilística, com um efeito multiplicador gigantesco, que propiciou o crescimento da indústria brasileira. Não devemos ser contra as multinacionais. Devemos, sim, obter delas aquilo que de melhor podem proporcionar ao País. E não ocorre isso realmente. E o governo não colabora. Qual é o país que tem esses volumes de impostos? Como se pode concorrer com os outros países? Vamos ter problemas muito sérios se continuarmos com essa política: antes de tudo falta incentivo.
AD – De qual tipo?
AQ – Veja o exemplo do álcool na década de 70. O governo chamou as montadoras e disse que era preciso produzir carros a álcool, porque era o combustível produzido aqui, com mão-de-obra nacional. O Brasil desenvolveu os primeiros motores a álcool, não havia tecnologia de motor a álcool em nenhum país do mundo. Os veículos a álcool chegaram a responder por cerca de 90% da produção.
AD – Por que a iniciativa de João Augusto Conrado do Amaral Gurgel de produzir um veículo realmente brasileiro não deu certo?
AQ – Confiar no governo, só isso. Ele até tinha capacidade técnica de produzir um bom veículo. Houve outras tentativas, como a da Brasinca. Mas não havia como aguentar a concorrência. Uma empresa como a Brasinca tinha que recorrer aos bancos nacionais e as empresas multinacionais captam recursos no Exterior, com juros baixíssimos. Um desequilíbrio total.
AD – E como o senhor vê um parque de fornecedores também dominado por companhias multinacionais? Das grandes empresas nacionais de autopeças, na prática, restou apenas a Sabó.
AQ – Por falta de uma política governamental. Estão acabando com a indústria nacional. A Fiesp tem exatamente esta mesma opinião.
AD – É possível supor que nas reuniões da Anfavea esse tema seja constante.
AQ – A Anfavea reúne empresas multinacionais, que têm a preocupação de não ser contra o governo. Mas a Fiesp vai lutar por isso. A indústria automobilística não dá uma palavra, entretanto está com 200 mil veículos encalhados. Com esses juros! Quanto custa um estoque desses? As montadoras precisam negociar, não criar o problema.