Parece mania de perseguição, mas a École de Guerre Economique, EGE, centro ligado ao Ministério francês da Defesa, que há vinte anos se dedica à tarefa da formação de quadros humanos especialistas em inteligência econômica, produziu documento que descreve o escândalo Dieselgate, que envolve ações da Volkswagen em nível global, “como um capítulo da guerra industrial dos Estados Unidos com a União Europeia às vésperas de grande acordo comercial transatlântico”.
Correspondente do jornal espanhol La Vanguardia, de Barcelona, em Paris, Rafael Poch teve acesso ao documento, que afirma que “o escândalo do Dieselgate, iniciado no ano passado contra a Volkswagen e que supõe um colossal golpe no baixo ventre da maior fabricante mundial de automóveis, foi concebido pelos Estados Unidos como ataque para fortalecer sua posição econômica e política diante da União Europeia”.
O nome do informe é As Interioridades do Assunto Volkswagen, e conta que no escândalo a concentração da atenção da mídia em torno dos mecanismos utilizados para organizar a fraude das emissões, ou da situação financeira da empresa alemã, “ignorou a dimensão estratégica do assunto”.
Tratando-se, manifestamente, de uma encrenca global. A investigação se limitou ao diesel e não aos veículos de gasolina para atrapalhar os fabricantes europeus pela simples razão de que o diesel representa 53,6% do combustível dos veículos na União Europeia e menos de 5% nos Estados Unidos. Tratava-se, assim, “de atacar uma vantagem tecnológica da indústria automobilística europeia diante de suas competidoras estadunidenses”.
O informe da EGE considera “inocentes” as organizações não governamentais dos Estados Unidos apresentadas como iniciadoras do escândalo, o ICCT, International Council on Clean Transportation, e o CAFEE, Center for Alternative Fuels Engines and Emissions da Universidade de West Virginia, responsáveis pela peritagem das emissões que ofereceram a base da acusação formulada pela EPA, a agência local do meio ambiente, em 18 de setembro do ano passado. Essas duas organizações aparecem no estudo como “meros instrumentos da indústria de automóveis dos Estados Unidos”.
A respeitável Fundação Ford entra na dança, segundo o informe, por responder por mais de 90% dos financiamentos ao ICCT em 2012 e 2013. Ford e General Motors são indicadas como clientes do CAFFE, informação que teria desaparecido da página da Universidade de West Virginia na internet desde 8 de fevereiro – é casual esse desaparecimento?, perguntam os autores do informe.
De qualquer maneira a iniciativa das duas organizações foi apresentada, pelos meios de imprensa anglo-saxões, como a “inocente e exemplar luta de um David não governamental contra um Golias industrial poderoso”, conta o informe, como o fez a Agência Reuters em 23 de setembro do ano passado: “David Carter, o investigador da Universidade de West Virginia, de 45 anos, desafiou, com quatro colegas, uma das empresas mais poderosas do mundo”.
Com variações no estilo foi essa a mensagem que a imprensa francesa comprou da Reuters, conta o estudo – como o diário econômico Les Echos e o semanário L’Obs.
O documento da EGE descreve “a utilização da Justiça dos Estados Unidos a serviço dos interesses de sua economia” e cita estudo da OCDE de 2014 segundo o qual nos últimos dezessete anos a Justiça estadunidense iniciou a metade das ações por corrupção transnacional, com tendências de castigar a concorrência: “Das dez maiores multas impostas sete diziam respeito a empresas estrangeiras nos Estados Unidos”.
As multas a empresas estadunidenses de automóveis, como a de U$ 900 milhões à General Motors em setembro do ano passado, são claramente menores dos que as impostas à sua concorrência, US$ 1,2 bilhão à Toyota em 2014 assim que ela conquistou a posição de primeira companhia no ranking do setor, desaprumando a GM – sem falar nos US$ 20 bilhões que se pede à VW logo depois de grandes investimentos nos mercados da América do Norte e que geraram crescimento de 33% de participação, em 2013 com relação a 2012, de seus carros movidos a diesel.
Também a sincronização informativa do Dieselgate foi “perfeita”, segundo o documento, para “obter o máximo impacto midiático”: no dia seguinte ao da abertura do Salão de Frankfurt, o mais importante do mundo – “Foi patente que os objetivos perseguidos não eram apenas de ordem judicial”.
O estudo vai muito além. Relata pelos menos duas vantagens do escândalo a favor dos Estados Unidos: na medida em que a realidade das normas ambientais e sanitárias europeias são mais exigentes do que as estadunidenses, o Dieselgate produziu o sentimento contrário: que são os europeus os mais relaxados; e à luz das negociações TTIP, de livre comércio dos Estados Unidos com a União Europeia, e de acordo com projeções elaboradas nos Estados Unidos, as construtoras europeias de veículos poderiam embolsar coisa de US$ 18 bilhões anuais de benefícios, “mas a debilitação da Volkswagen seria um golpe de misericórdia no seu progresso”.
Christian Harbulot, diretor da EGE e responsável final pelo estudo, observa que as circunstâncias colocaram a Volkswagen, a Alemanha e a União Europeia em situação de não objetar, não discutir nem denunciar o golpe: “Para eles é muito difícil reagir porque estão comprometidos e preferem optar pela postura do perfil discreto”.
“Os estadunidenses foram muito astutos ao montar a operação para obrigar a Volkswagen a reconhecer a mentira. Não é a primeira vez que vimos manobras informativas desse tipo, cujo objetivo é que a mentira apareça num aspecto concreto e que provoque confissão”.
Empresas francesas acumulam larga experiência de punições junto à Justiça dos Estados Unidos, recorda o estudo. Cita como exemplos a Perrier e a eletrônica Schneider, submetidas a tais pressões – quando estavam em alta nos mercados da América do Norte – que seus diretores não se arriscavam a tomar um avião que remotamente pudesse aterrissar em território dos Estados Unidos.
Mais recentemente o diretor da área de turbinas da Alstom foi detido num aeroporto nos Estados Unidos e assim permaneceu, em cadeia de segurança máxima, por um ano e meio por não denunciar corrupção em país do Sudeste Asiático.