Ao mesmo tempo em que registra, nos últimos quatros anos, queda de quase 50% em suas vendas domésticas a indústria automobilística permanece inaugurando novas fábricas e lançando continuamente novos produtos. A incoerência é, contudo, apenas aparente. Trata-se, na verdade, do resultado final de investimentos definidos e aprovados nos primeiros anos desta década – ainda nos bons tempos em que o Brasil se colocava como o quarto maior mercado de automóveis do mundo, à frente até do da Alemanha, o maior da Europa.
A contar de 2013, todavia, este será o quarto ano seguido de queda nas vendas domésticas. Com o tempo aquilo que se imaginava ser nada muito mais do que um leve ajuste após um período de anos e anos de crescimento constante acabou por se revelar a maior crise que este setor já enfrentou.
E crise dupla, na medida em que a maior queda de vendas se deu exatamente no momento em que novas fábricas estavam sendo construídas, seja por montadoras há muito já instaladas no País seja por outras, novas, que chegavam atraída por um mercado potencial que parecia apontar na direção de 5 milhões de unidades vendidas por ano.
O resultado prático é que as fábricas de automóveis operam, hoje, na média, com cerca de 50% de ociosidade, índice que sobe para perto de 80% no caso das de caminhões e ônibus.
É sabido que fazer carreira em qualquer montadora ou grande empresa fabricante de componentes não é nada fácil. Exige muita dedicação, excelente formação e, sobretudo, invejável capacidade de enxergar a realidade e interpretar corretamente os cenários à frente.
Como explicar, então, que os principais executivos de todas as principais montadoras do mundo, americanas, europeias ou asiáticas, puderam errar tanto com relação ao Brasil e ao real potencial de seu mercado?
É de conhecimento geral que países emergentes ou em desenvolvimento, enclave no qual o Brasil se inclui, não se movem exatamente de acordo com os manuais clássicos da economia e da política, aqueles que estão na base do ensino no chamado lado desenvolvido do mundo.
Com elástica capacidade de incorporar novos consumidores ao mercado de qualquer tipo de produto ou serviço mas, ao mesmo tempo, umbilicalmente dependente da disponibilidade de crédito, a alternância de ciclos nos países emergentes é relativamente normal. Às vezes para cima, outras tantas para baixo.
A primeira lição que qualquer executivo de empresa multinacional aprende quando chega ao Brasil é a de que, aqui, mais do que o resultado do ano em curso, o que importa, de fato, é a curva de tendência. Quando ela estiver voltada para cima é hora de acelerar forte. Mas quando ela apontar para baixo…
E é isto o que explica tantas novas fábricas inauguradas ao longo do ano passado e dos primeiros meses deste ano – a próxima, a da Land Rover, o será em 14 de junho, menos de noventa dias depois da inauguração da nova fábrica de automóveis da Mercedes-Benz e da nova unidade produtora de motores da Toyota, dentre tantas outras.
Quando a maior parte das decisões referentes a estas novas fábricas foram tomadas a curva ainda estava embicada para cima. Bem para cima.
Mesmo depois de 2013, com as vendas já em queda, a interpretação continuava sendo a de que se estava diante de uma leve acomodação de mercado, absolutamente natural depois de tanto tempo seguido de crescimento. Ou seja: permanecia firme a convicção de que, no médio prazo, a curva continuava embicada para cima. Era só uma questão de tempo.
Na verdade, mesmo no ano passado, já às voltas com redução de 25% nas vendas de automóveis e de 50% nas de caminhões e ônibus, a chegada da PPE foi saudada tanto pelas montadoras quanto pelos sindicatos dos trabalhadores como uma forma de ganhar tempo até que, no início deste ano, a curva voltasse a apontar para o alto. Alto pequeno. Talvez até menor do que 5%. Mas já para o alto.
A realidade foi bem diferente. Bem pior. Muito pior: a bordo de uma grande e inesperada instabilidade política, da insegurança dos consumidores gerada por milhões de demissões, de taxas ainda mais elevadas de juros e de crédito bancário ainda mais restrito, o que chegou, este ano, foi nova queda na faixa dos dois dígitos. Possivelmente acima de 20%.
Mais uma vez todas aqueles ilustres cavalheiros em postos de comando no setor automotivo, todos de tão sólida formação, erraram completamente suas previsões.
Ou será que não? Tanto os fabricantes de caminhões quanto os produtores de automóveis mantém firme a aposta de que, apesar de todos os pesares de curto prazo, de curtíssimo prazo, os fundamentos continuam todos a postos.
E muito bem postos: a agricultura permanece registrando recordes, as obras de infraestrutura ainda terão de ser feitas e a relação automóvel por habitante continua sendo, de longe, a mais baixa no mundo dos países emergentes.
Neste contexto o Brasil real nada teria a ver com esta versão Macunaíma que hoje vivemos, sobretudo na Capital Federal. Mas seria, sim, o outro, aquele com a curva de tendência devidamente embicada para cima.
O Brasil real seria, em síntese, aquele que serviu de base para todos os investimentos que agora estão resultando em tantas novas fábricas, em tantos novos empregos que permanecem apenas em potencial.
Na base das dificuldades de hoje estaria, enfim, aquele mesmo ajuste previsto para acontecer após quase uma década de crescimento constante. Com duração e efeitos maiores do que os inicialmente projetados por ter extrapolado as fronteiras da economia e se espraiado também para a esfera política. Mas, ainda assim, apenas um ajuste. Nada muito mais do que um acidente de percurso.
Será? Faz, no mínimo, algum sentido. Vale cruzar os dedos.