Modelo de sistema de mobilidade urbana há quase quarenta anos e copiado por mais de duzentas cidades em todo o mundo, Curitiba, a Capital do Estado do Paraná, vem sofrendo, há cerca de quatro anos, processo de sucateamento. Ao contrário do que todo o resto do Brasil e do mundo têm como imagem, o sistema parou no tempo e precisa de novos investimentos, em bilhetagem eletrônica, gestão moderna e participativa e integração eficaz com a rede metropolitana.
Cidades como Bogotá, Colômbia, e Rio de Janeiro, RJ, dentre outras, evoluíram muito mais do que Curitiba com a adoção de soluções inovadoras e diferenciadas para acompanhar o crescimento populacional e a expansão geográfica. Com isso continuam a atrair novos passageiros e a oferecer benefícios tangíveis aos usuários.
Um dos indicadores desta triste realidade é comprovado pelos dados divulgados recentemente pela NTU, Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos, que mostram a redução de mais de 8% no número de passageiros transportados, a maior queda no conjunto de todas as capitais brasileiras no ano passado.
O presidente do Setransp, Sindicato das Empresas de Transporte Urbano e Metropolitano de passageiros de Curitiba e Região Metropolitana, Maurício Gulin, pergunta e afirma: “Como é que o melhor sistema do Brasil, modelo para o mundo, pode perder passageiros a cada ano e ter a maior evasão do País? Se estivesse alcançando os objetivos e oferecendo o padrão de serviço desejado o número de usuários estaria crescendo”.
A pesquisa realizada pela NTU mostra que Curitiba foi a cidade que mais perdeu passageiros no transporte coletivo em 2015, quase o dobro da média nacional. Em todo o País os ônibus deixaram de transportar 900 mil passageiros por dia nas dezesseis grandes cidades analisadas, baixa de 4,2% no período.
“Enfrentamos um momento muito delicado na história de sessenta anos do sistema de Curitiba”, conta Gulin. “Nos últimos anos paramos no tempo. Quase nenhuma das melhorias propostas pelos operadores no Projeto 24 Meses foram adotadas. Com isso o serviço não evoluiu, tem problemas e perdeu 1,2 milhão de passageiros por mês, em 2015.”
O Projeto 24 Meses tem diversas propostas elaboradas pelas empresas com o objetivo de, em dois anos, aumentar a velocidade média dos ônibus na cidade.
Segundo o presidente as dificuldades começaram logo após a licitação, em 2010, com a falta de cumprimento do contrato pelo poder concedente. A cada ano a URBS, gerenciadora do transporte, soma todos os custos do sistema e divide por uma projeção de passageiros que devem andar de ônibus até o ano seguinte. O resultado dessa divisão é o valor da tarifa técnica, o montante que as empresas devem receber para arcar com seus custos. Parece simples, mas a projeção de passageiros estimada pelo poder concedente nunca se realizou, o que gera um déficit financeiro significativo para as operadoras.
Em 2015, por exemplo, a URBS projetou que 18,8 milhões de passageiros/mês embarcariam nos ônibus, mas foram 17,6 milhões. Multiplicando-se a diferença de 1,2 milhão de passageiros pela tarifa da época, de R$ 3,30, chega-se a um prejuízo para as empresas de cerca de R$ 40 milhões. Ao estimar um número de passageiros mais alto do que realmente é realizado, a URBS diminui a tarifa técnica e deixa o prejuízo para as empresas operadoras.
Curitiba possui duas tarifas: a social, que é o valor cobrado do passageiro, hoje em R$ 3,70, e a técnica, valor repassado às empresas, de R$ 3,66. Chama a atenção o fato de o usuário pagar mais do que é repassado às empresas. Até nisso Curitiba está na contramão do Brasil, com o passageiro subsidiando o poder público quando a relação deveria ser o oposto disso. Em São Paulo, por exemplo, a tarifa técnica é de R$ 5,71, mas, como a Prefeitura coloca R$ 2 bilhões de subsídios por mês, o passageiro paga R$ 3,80.
O que acontece em Curitiba coloca em risco o modelo de mobilidade urbana e demonstra a sua vulnerabilidade, sobretudo com relação à gestão e à defesa dos interesses dos usuários. Com a perda contínua de passageiros, o crescimento das invasões – os chamados fura-catraca – e um sistema de bilhetagem com tecnologia ultrapassada, que torna questionável sua eficiência, a receita das empresas operadoras despenca, levando ao descompasso dos custos e das despesas. Esse é um importante ponto para o equilíbrio do sistema, sem o qual ocorre perda de investimentos no transporte, com consequentes prejuízos à população.
“Isto serve de alerta e de exemplo para todas as mais de duzentas cidades em todo o mundo que se inspiraram no sistema de Curitiba”, diz Gulin. “Sem evolução e inovação constantes, modernização e aplicação eficaz e eficiente dos recursos, não se proporciona melhorias e vantagens para os usuários e se perde passageiros.”
Para quem não convive no dia a dia, Curitiba é exemplo e referência. Mas está agonizando. A renovação da frota e a adoção de modelos mais modernos estão paralisadas em razão do não cumprimento dos termos do contrato firmado pela URBS com os consórcios vencedores da licitação e suas respectivas empresas.
A idade média da frota circulante, de 2,3 mil veículos em Curitiba e na Região Metropolitana, que era de 3,8 anos em 2012 pulou para 7 anos. São praticamente três anos sem renovação de frota.
Somente em Curitiba são cerca de 180 ônibus do total de 1,5 mil unidades que ultrapassaram a sua vida útil de 10 anos, mas não podem ser substituídos por uma determinação da Justiça, de novembro de 2013, em razão do não cumprimento pela URBS do contrato com as empresas.
Gulin insiste: “Por questões políticas a qualidade do transporte oferecido está sendo ameaçada. Mesmo com os índices altíssimos de eficiência operacional, de 99,4%, bem acima do índice exigido em sistemas como este em outras capitais do Brasil, de 90%, há diversos problemas, como os fura-catracas e um sistema de bilhetagem defasado de novas tecnologias, que colocam em risco a segurança do usuário, abalam a sua confiança e são motivos para a evasão de passageiros”.
Avalia-se que pouco mais de 3,8 mil pessoas por dia furam a catraca e embarcam sem pagar. O problema é grave e continua aumentando. Na Capital paranaense há estações nas quais o número de invasões é maior que a de passageiros pagantes, grande parte feita por usuários comuns e não gangues ou baderneiros.
O sistema de bilhetagem e as estações estão desatualizados e não atendem à demanda da população, lembra Gulin: “Os novos ônibus biarticulados têm cinco portas para embarque e desembarque e as estações têm apenas três plataformas. Com isso muita gente entra e sai sem passar pelas catracas, colocando em risco a integridade física das demais pessoas”.
Em municípios paranaenses como Cascavel, nos quais existe uma cogestão de todo o sistema de bilhetagem, os indicadores de desempenho são muito melhores e os usuários melhor atendidos e mais satisfeitos com o processo: “No restante do sistema metropolitano de Curitiba a bilhetagem é muito mais eficiente, com biometria facial, aplicativos para smartphones e wi-fi. A integração com Curitiba poderia ser muito melhor”.
Se nada for feito Curitiba continuará a perder usuários no sistema de ônibus, com prejuízos para a mobilidade urbana, para a qualidade de vida e para o bem-estar da população. O mais preocupante é que por ser exemplo replicado para grande parte do mundo a sua falência pode prejudicar a adoção e/ou a gestão de outros sistemas, no Brasil e no mundo.
José Carlos Secco é um dos titulares da agência Secco Consultoria de Comunicação