Em época de crise aguda, como essa de hoje, é natural e compreensível que todos vigiem as laterais, como forma de evitar que concorrentes mais próximos possam se aproveitar de qualquer fraqueza momentânea para tomar pontos de participação no mercado que, depois, vão ser muito difíceis de recuperar.
É bom não esquecer, todavia, que, em temos globais, nestes tempos de tão profundas e rápidas mudanças, os principais e mais letais inimigos a serem enfrentados pelas montadoras de veículos não estão mais ao lado. Estão, na verdade, chegando e atacando pela retaguarda. E não raro até espertamente disfarçados de parceiros.
A rigor, a maior parte desta nova geração de “inimigos” nem faz parte ainda da área automotiva. Ao menos tal como hoje ela é definida e conhecida. Mas não restam dúvidas de que a médio prazo – e médio prazo aqui entendido como algo não muito maior do que de cinco e dez anos a frente – tem potencial para mudar consideravelmente a forma como este setor agora funciona e se estrutura.
Uma das principais características desta nova safra de inimigos a serem enfrentados está no fato de que eles não se propõem necessariamente a fabricar veículos, em particular automóveis. Mas, sim, a tornar a chamada mobilidade individual bem mais racional. E, por consequência, a tornar a posse de carros e afins no limite quase que do completamente desnecessário.
O automóvel, vale destacar, é um produto que beira as fronteiras da insanidade. Pesa mais de uma tonelada e na maior parte do tempo serve para transportar menos de cem quilos. Ou seja: quase toda a energia que produz e consome serve para movimentar a si próprio.
Nos tempos atuais, qualquer startup que se propusesse a desenvolver, produzir e comercializar um produto com tais características morreria a míngua. Não conseguiria atrair um único centavo.
Mas porque, então, tantos milhões de automóveis são produzidos e vendidos ano após ano? Pela boa, simples e concreta razão de que um carro representa, antes de tudo, liberdade. A liberdade de ir e vir, para o destino que se quiser, no exato momento em que se decidir, pelos caminhos que se escolher, na velocidade pela qual se optar, sozinho ou na companhia de quem se desejar.
Quem compra um automóvel compra, portanto, antes de tudo, liberdade. Liberdade de movimentação. De capacidade irrestrita de mobilidade. A questão é que, hoje em dia, tudo pode ser conseguido a partir de um simples aplicativo de celular que seja capaz de se conectar, por exemplo, com a paulistana 99 Taxi ou com a global Uber. Há ofertas para todos os gostos e bolsos. Com a vantagem de todas elas permitirem tomar um bom vinho durante o jantar num restaurante.
Nem a 99 Taxi e nem a Uber desenvolvem, produzem ou vendem um único veículo. Mas reduzem dramaticamente a necessidade de se ter a posse de um carro. Ao menos nos grandes centros, com esta fusão da internet, smartphones e aplicativos, a liberdade de ir e vir já está absolutamente garantida. A qualquer momento. De qualquer lugar.
Há outros inimigos menos óbvios, mas que podem vir a ser igualmente devastadores. Ou até mais. Dois exemplos: trabalho em regime de home office e WhatsApp. Os dois reduzem, e muito, a necessidade de se locomover de casa para o trabalho ou, mesmo, para os locais onde estão os amigos a parentes.
Rogelio Golfarb, vice-presidente da Ford, considera que quando se projeta, hoje, o setor automotivo cinco a dez anos a frente, a única certeza que se pode ter é a de que tudo vai mudar. De forma significativa. E muito rápido.
Pessoalmente, ele acredita que, ao menos neste horizonte de tempo, a maior parte do mercado ainda vai ser formada não por empresas prestadoras de serviço, mas pelos mesmos consumidores individuais de hoje. E considera que, afinal, sempre caberá ao usuário de qualquer forma de serviço de mobilidade a escolha do carro no qual vai preferir ser transportado.
A maior dificuldade, hoje, segundo ele, é tentar projetar o que este consumidor vai desejar encontrar dentro de um carro daqui a cinco ou dez anos. “Crianças com apenas quatro anos de idade já se sentem a vontade com tablets e não encontram qualquer dificuldade para operar este tipo equipamento”, lembra, com base na realidade que vive em casa, com sua família. Quais serão os valores destes novos usuários e/ou consumidores de automóveis?