O primeiro semestre marcou virada histórica no mercado brasileiro de automóveis. Histórica e reveladora: os carros de entrada, que puxaram o crescimento das vendas na segunda metade da década passada e chegaram a responder por praticamente um terço do total de automóveis novos comercializados no País, perderam relevância e acabaram superados – e bem superados -, pelo segmento dos hatches pequenos.
Depois de ter sido por anos a fio o principal meio de acesso da chamada nova classe média ao mercado de automóveis novos, desde 2012 a fatia correspondente aos carros de entrada vem em queda livre. No fim do ano passado já tinha registrado empate técnico com o segmento dos hatches pequenos. E, agora, acabou ultrapassada.
Em termos concretos, depois de ter respondido por 32,7% das vendas de automóveis em 2011, a fatia dos veículos de entrada caiu para 23,4% no ano passado. E, finalmente, para 20,8% no primeiro semestre deste ano, já um bocado distante dos 25,8% anotados nos hatchs pequenos e apenas um pouco a frente dos SUVs (17,7%) e sedans pequenos (16,8%).
Como esta queda de participação se deu ao mesmo tempo em que o mercado como um todo também apresentava redução de volume, o que se configurou foi, na verdade, uma espécie de queda dentro da queda, uma potencializando a outra.
Os efeitos foram devastadores: entre 2011e 2015, enquanto as vendas de automóveis como um todo caíram 26,8% – de 2,9 milhões para 2,1 milhões de unidades – no segmento específico dos carros de entrada a queda registrada foi de 47,7%, de 949,5 mil para 496,5 mil unidades.
Mantidas as atuais projeções de vendas para este ano, ao fim de 2016 as vendas neste segmento específico de entrada deverão somar cerca de 377 mil unidades, 60,2% menos que as registradas há cinco anos.
Foram vários e sucessivos os golpes que minaram a capacidade de atração e retenção de consumidores por parte deste segmento de entrada que, nas estatísticas da Fenabrave, é o formado pelo Gol e Up!, da VW, Palio e Uno, da Fiat, Ka, da Ford, Celta, da GM, Clio, da Renault, e Ethios, da Toyota.
Cabe destaque particular entre eles a obrigatoriedade, a partir de janeiro de 2014, de airbag e freio ABS em todos os carros produzidos.
De imediato isto significou o fim da produção do Fiat Mille e do VW Gol Geração 4, modelos que, de tão antigos, não tinham como incorporar tais itens. E estes eram, então, justamente os modelos mais baratos em oferta mercado, os únicos abaixo de R$ 25 mil, em valores da época.
Nos demais modelos de entrada, a incorporação, embora tecnicamente possível, implicou num aumento médio de preço unitário da ordem de R$ 1,5 mil a R$ 2,0 mil, valores especialmente elevados em se tratando desta faixa específica do mercado.
Quase que ao mesmo tempo, além disso, chegava ao fim o programa governamental de incentivo que reduzia o IPI para os carros equipados com motor 1.0, característica comum a todos os modelos de entrada na época.
Resultado prático: no curto espaço de dois a três trimestres, o patamar mínimo de entrada no maravilhoso mundo dos carros zero quilômetro ficava 15% a 20% mais elevado, se aproximava dos R$ 30 mil e, assim, fechava esta porta para milhares de consumidores. Dezenas de milhares.
Como desgraça pouca é bobagem, tudo isto aconteceu ao mesmo em que os bancos reagiram em virtude da elevação da inadimplência com o aumento da seletividade na concessão dos financiamentos. E crédito, todos sabem, é o oxigênio básico sem o qual a vida deixa de existir neste segmento de entrada.
Em pouco tempo, os financiamentos sem entrada desapareceram, os prazos máximos caíram de 60 para 36 meses, as taxas de juros subiram até 40% e, para fechar o quadro, de cada dez solicitações de crédito, seis a sete passaram a ser recusadas e apenas três a quatro aprovadas.
Neste contexto por si só já bem pouco alentador, as demissões a reboque da crise acabaram garantido dose extra de pimenta ao tempero. Vale lembrar que, na segunda metade da década passada, foi justamente a situação de pleno emprego que gerou, dentro da renda familiar, a folga necessária para acomodar a prestação do financiamento do carro zero quilômetro.
Hoje acontece o inverso. A cada novo demitido, o espaço no orçamento familiar para qualquer compra fora da cesta básica fica menor. E não são poucas as famílias que tem, agora, um, dois e até três desempregados.
Ou, no mínimo, famílias que estão com medo de ficar nessa situação, o que faz desaparecer a confiança em relação ao futuro, sem a qual são bem poucos os que atrevem a tomar empréstimo para comprar carro zero.
É certo que o setor automotivo vive, hoje, no Brasil, momento de exceção. Por maior que seja a concentração de renda no País, foge ao natural o segmento de entrada não ser o maior e, muito menos, que tenha, nos seus calcanhares, os segmentos de SUVs e sedans pequenos.
Por agora, porém, resta a constatação de que a chamada nova classe média que floresceu na segunda metade da década passada e trouxe junto recordes e recordes de vendas automotivas, acabou expulsa, ao menos por enquanto, do segmento de entrada, o primeiro degrau do relativo paraíso dos carros zero quilômetro.
E, ao sair, levou junto o sonho de se fabricar e vender no Brasil, ainda nesta década, mais de cinco milhões de unidades por ano — o necessário para consolidar sua presença entre os cinco maiores mercados do mundo.