Não há dúvidas a respeito da crise que assola a indústria automotiva e o seu mercado. Os atores do setor dizem ser principalmente pela falta de confiança resultante muito mais pelas incertezas políticas do que propriamente econômicas.
As apostas no País, no entanto, parecem não terem ficado em segundo plano. Tanto é verdade que os fabricantes não estão sentados em suas cadeiras esperando o tempo bicudo passar. Pelo contrário os lançamentos não param de agitar o mercado, caso do Nissan do Kicks. O modelo é claramente uma dessas apostas, um produto estratégico da empresa para brigar nas pontas em sua categoria e galgar terreno para que a montadora finalmente conquiste mais dos os 3% de mercado que tem hoje.
Também a Honda olha para o futuro e colocará a partir de 25 de agosto em sua rede de concessionários o Civic Geração 10, uma família de novos carros que chega com uma ambição renovada para mexer com o segmento de sedãs médios. Também ela espanta os males do atual ambiente pouco comprador para tentar tirar vendas do Toyota Corolla.
E sobre apostas e crise também falam os representantes do segmento de caminhões em seminário organizado por AutoData. Para eles não se trata de a turbulência ter ficado para trás, mas pelo menos o humor é outro, aquele que já começa a esboçar mais confiança.
Sentimento, aliás, que Rogelio Golfarb, vice-presidente de relações institucionais da Ford, ainda custa acreditar. Suas impressões e análises do mercado automotivo, como também do cenário econômico você já confere nas próximas páginas desta edição do boletim da Agência de Notícias AutoData. Para ler o restante do conteúdo basta acessar o link arquivos/autodatadigital/324-2016-08/#1/z no site da AutoData Editora pela aba Publicações.
A Anfavea prevê alguma estabilidade neste segundo semestre. O senhor acredita que o pior já passou?
Todo mundo quer isso, mas acho prematuro dizer que o pior já passou. Nossa função é ir a fundo na análise técnica, avaliar os fundamentos. É um rigor técnico que o momento exige. Não é para dar chutes, não é para amadores. Primeiro temos de avaliar os fundamentos macroeconômicos, principalmente aqueles que pesam na equação de compra a venda, como por exemplo o PIB. Ele caiu 3,8% no ano passado e deve cair 3,3% este ano. É um cenário brutal.
Quais são os demais fatores a serem considerados?
Temos de olhar também para o déficit fiscal, e vale lembrar que há uma predominância fiscal na crise econômica. O tamanho do déficit, que hoje é de R$ 170 bilhões, define o tamanho do ajuste. E o tamanho do ajuste significa a dificuldade de retomada. Também tem que ser levada em conta a taxa Selic, hoje em 14,25%. Não acredito que vá cair.
E a questão do crédito?
Apesar de todo o arrocho no crédito a inadimplência está subindo. Isso porque tem muita gente perdendo o emprego e a renda está em queda. Em maio, por exemplo, caiu 2,5%. Desemprego com renda baixa quer dizer que o crédito vai continuar seletivo. Quando olhamos essa equação toda pergunto: onde está a luz no final do túnel? O único fator positivo, mas que não tem reflexo imediato nas vendas, é a queda da inflação. De fato o que temos um cenário recessivo. Acho que é prematuro falar em estabilização.
Mas em junho as vendas reagiram em relação a maio?
Todo mundo está falando isso mas não é bem assim. Primeiro não se deve fazer comparativo com o mês anterior. E historicamente junho é 5% superior a maio. Ou seja, para ser igual, teria de ter crescido 5%. Esse é um erro que as pessoas vêm fazendo sistematicamente. Tecnicamente as vendas caíram com relação a maio.
Não temos, então, sinais de estabilidade?
Vamos pegar a média diária de venda dos primeiros semestres dos últimos anos. De 14,6 mil em 2013 baixou para 13,7 mil no ano seguinte, 10,8 mil em 2015 e 8,1 mil este ano. Não tem estabilidade. A indústria está em um mergulho. A queda este ano é de 25%, perdemos ¼ do mercado. Se a gente cavoucar não vemos sinal de estabilidade.
E quando poderá vir a retomada?
Não dá para falar que chegamos ao fundo do poço, mas começa a ter uma expectativa de crescimento a partir do ano que vem. Isso assumindo que os governos, sejam quais forem, façam o que têm de fazer. Tem trajetória de queda da inflação e redução do déficit fiscal, o que começa a dar espaço para a queda da Selic. Mas a redução dos juros tem uma inércia de seis meses. Só vejo espaço para começar a crescer a partir do segundo semestre de 2017.
Em quanto a Ford estima o mercado este ano?
Acreditamos em um mercado de 2 milhões. A Anfavea está um pouco mais otimista (previsão de 2 milhões 80 mil). Mas ainda vejo um risco de as vendas ficarem abaixo desse nível.
E as exportações?
Tem outro fator que é o cenário externo, não tão benigno como antes. Com a desvalorização do real os nossos produtos ficaram mais competitivos em mercados nos quais já estávamos. Agora o câmbio mudou. As oportunidades vêm e vão com a volatilidade do câmbio.
A crise brasileira coincide com um momento de grandes transformações na indústria global. Isso não pode prejudicar a indústria local?
Vou falar uma frase que pode parecer estranha. Estou mais preocupado com o futuro da indústria automotiva no Brasil do que com o presente. O setor sairá desta crise descapitalizado e endividado. E mundialmente a indústria está passando por uma revolução tecnológica sem precedentes. Com a necessidade de reduzir emissões acelerou-se o processo de eletrificação. O consumidor, com tudo isso, passa a ter uma relação com a máquina completamente diferente.
O que isso afeta a indústria globalmente?
A diferença hoje é que têm novos atores no setor altamente capitalizados, como Google e Apple. O setor está num ponto de inflexão. Antes fazer motor era fundamental, hoje talvez seja fazer softwares. E a indústria brasileira vai enfrentar um momento de cadência de inovação brutal saindo de uma crise altamente descapitalizada, com níveis de competência baixos. O Brasil precisa fazer acordos internacionais mas a indústria não tem competitividade. Nossa carga tributária é a maior do mundo e o setor está descapitalizado, o que se traduz em uma deficiência competitiva enorme.
Como é a relação hoje montadora versus fornecedores? O Brasil não está com problema de escala?
Para enfrentar o futuro e voltar a ter mundialmente o espaço de 2012 a indústria brasileira precisará redimensionar toda a questão de suprimentos e também da carga tributária. Temos de nos reorquestrar. Não dá para ter tributação da década de 80 com tecnologia dos dias atuais. A indústria hoje tem seu forte nos softwares e na eletroeletrônica e o Brasil não produz nada nessas áreas.
O que fazer então? Não é hora de ter uma nova política industrial?
Estamos tão focados na crise que a minha preocupação agora é justamente a de começar a pensar no futuro, pensar em uma agenda de competitividade. Está todo mundo descapitalizado e é difícil pensar no futuro com problemas financeiros no dia a dia. Mas dá para começar a pensar em levar adiante essa discussão. Podemos ter um mercado importante abastecido pelo resto do mundo, podemos ter montagens aqui e podemos ter o papel que acredito que o Brasil deva ter de fazer engenharia e também receber do resto do mundo. Tem de ter troca.
O senhor refere-se àquela questão de o País ser um grande mercado e não necessariamente um grande produtor?
A troca tem de existir. Temos de receber e ao mesmo tempo ter competência e produtos adequados para mandar para fora. E precisamos começar a pensar nisso agora. No novo mundo automotivo não há espaço para os parafusos e porcas. Sem querer desmerecê-los. O futuro está na engenharia. Não podemos esperar o fim da crise para pensar no que fazer, pois a velocidade das coisas lá fora é muito grande.
Não seria o momento de se recriar a câmara setorial?
Acho que não precisa disso. Temos lideranças hoje em todas as entidades do setor e também em sindicatos que têm visão clara dos problemas e desafios do setor, visões progressistas. O importante é não esperar o fim da crise para começar a pensar no futuro.
O senhor fala na importância da engenharia mas pelo que se sabe a grande maioria das montadoras, inclusive a Ford, vem investindo forte nessa área.
Sem dúvida a Ford e outras empresas investiram muito nisso. Mas quando se fala em competitividade o foco é fazer o que cabe no bolso do consumidor. Com a crise ficou mais difícil oferecer o que cabe no bolso dele. A gente tem de entregar o que o consumidor quer. Quem não fizer isso não vai sobreviver. É uma questão estratégica.
Vamos falar um pouco da Ford. Este ano a marca passou do quarto para o sexto lugar no ranking nacional. Como o senhor avalia isso?
É importante dizer que das quatro grandes a Ford foi a que menos perdeu. No período de crise investimos em inovação, em produtos globais e em lançamento como o do Fiesta com motor EcoBoost. Nossa visão continua a mesma. Investimos em tecnologia e conectividade. Fomos os primeiros a trazer a assistência de emergência e a injeção direta para o motor flex. Isso está mudando a percepção das pessoas com relação à marca.
Perder o quarto lugar, então, não preocupa?
O que temos visto é gente comprando mercado. É uma dinâmica que nós preferimos não entrar. Nós não vamos comprar mercado. Tem montadora grande com as vendas diretas representando 48% dos seus negócios. E têm pequenas nas quais esse índice já chega a 40%. Nós também vendemos para frotista, mas em proporção menor. Não é crítica, é estratégia. Somos competitivos, fazemos promoções. Mas não vamos fazer nada que comprometa nosso futuro.
O senhor fala muito em competitividade mas pelo que vemos a Ford, por exemplo, tem produtos hoje aqui similares aos de fora…
Temos produtos aqui iguais aos lá de fora. Temos produtos globais tanto no segmento de automóveis como no de caminhões e vamos continuar investindo em engenharia. A estratégia é achar o equilíbrio entre enfrentar a crise e ao mesmo tempo estar preparado para o futuro, tanto do ponto de vista do produto como do relacionamento com o consumidor.
Qual o grande desafio do setor hoje?
Hoje todos querem conectar-se. E é justamente isso que traz uma característica diferente ao setor. Tem gente querendo invadir a nossa praia. E é gente altamente capitalizada. Antes a indústria automotiva competia com a própria indústria automotiva e tinha de estar sempre se reinventando. Hoje compete com a indústria de software. São empresas de grande sucesso que têm competência para isso e querem fazer carro. É uma situação que levará todos a reavaliarem muita coisa. As mudanças são aceleradas, em pouco tempo muda tudo. Não basta apenas inovar. O fundamental é ter uma cadência constante na inovação. E não pode ser uma cadência lenta.