Apesar de o setor automotivo viver o quarto ano consecutivo de queda de vendas, diversas montadoras e empresas sistemistas comunicaram nos últimos noventa dias a decisão de manter absolutamente inalterados seus planos de investimentos para o Brasil. E, em todos os casos, por boas e concretas razões.
É bem provável que o gradativo avanço neste período do processo de impeachment – concluído na tarde de quarta-feira, 31 de agosto – deve ter colaborado na medida em que a saída definitiva da presidente afastada e a posse efetiva do novo presidente sempre projetou a adoção de novos rumos na área da economia.
E é claro, também, que o fato da média diária de vendas se manter em torno de 8 mil unidades desde meados do primeiro semestre igualmente deve ter tido peso ponderável. Trata-se, afinal, de bom indicativo de que, desta vez, o fundo do poço foi de fato alcançado. Ou, em outras palavras, de que o pior muito provavelmente já passou.
Todavia, mesmo que esta relativa estabilidade não estivesse sendo registrada, ainda assim é bem pouco provável que tais empresas assumissem o risco de interromper os investimentos programados.
Trata-se do ciclo normal e natural do setor automotivo. Durante os anos de crescimento constante, a prioridade das montadoras e sistemistas era aumentar a capacidade instalada de produção ou, no caso dos novos competidores, a construção das fábricas.
A fase agora é outra. As prioridades do momento passam a ser os investimentos na modernização de fabricas antigas e, sobretudo, no desenvolvimento e no lançamento de novos produtos, sejam eles automóveis, comercias leves, caminhões ou ônibus.
São, em síntese, aquilo que Philipp Schiemer, presidente da Mercedes-Benz do Brasil, define como investimentos estratégicos. Ou seja, aqueles que se não forem feitos podem comprometer, e muito, o poder de competição da companhia em médio prazo.
No caso específico da Mercedes-Benz, o investimento projetado de R$ 730 milhões, que engloba o período de 2014 até 2018, já resultou na renovação e ampliação das linhas Actros e Atego. E foca, agora, em reformulação da fábrica de São Bernardo do Campo, SP, – a principal da companhia, que está completando 60 anos de funcionamento e que precisa ser colocada em pé de igualdade, em termos de produtividade, com as novas fábricas que estão sendo instaladas, sobretudo pelos concorrentes.
Os novos Actros e Atego foram apresentados em outubro do ano passado. Apenas um mês depois, portanto, da apresentação das versões igualmente renovadas das linhas Constellation, Worker e Delivery da MAN, a empresa com a qual a Mercedes-Benz disputa cabine a cabine a liderança do mercado.
Era, assim, movimento que não tinha como deixar de ser feito. Nem por uma e nem pela outra. Afinal, além dos novos players que chegaram, como DAF e International, todas as demais montadoras que atuam neste segmento, Agrale, Ford, Iveco, Scania e Volvo, também trataram de reforçar suas linhas de produtos neste mesmo período.
É a lei da selva automotiva: quando o consumidor rareia, cada uma tentar buscar na fatia de mercado das outras alguma compensação para a queda de mercado como um todo.
Na área dos automóveis e comerciais leves, a situação não é diferente. Depois de ter perdido a liderança para a General Motors, que praticamente renovou toda sua linha de uma só vez, a Fiat, por exemplo, não tinha nem como pensar em adiar o lançamento do Mobi, realizado em abril passado. E muito menos em cancelar a renovação do Uno, programado para chegar agora em setembro.
O movimento da Fiat, por sua vez, deixa a Volkswagen – que já foi líder e hoje se encontra em terceiro lugar no ranking do setor – sem alternativa a não ser, no mínimo, renovar rápida e completamente a linha do Gol, ainda seu principal produto.
A fila vai longe, com o movimento de cada uma forçando todas as demais a mexer suas próximas peças no tabuleiro do mercado. Algumas vezes em mero movimento de defesa, outras tantas de puro ataque, como é o caso, por exemplo, da completa reformulação que a Toyota vem fazendo em sua linha Etios.
E é uma batalha que vai de ponta a ponta do mercado. Que se alonga da base ao topo, do Mobi a novo X4, SUV cujo início da produção local foi anunciado há poucos dias pela BMW.
E que passa, entre outros, também pelo novo Civic, que acaba de ser deslocado para cima pela Honda a fim de abocanhar parte dos consumidores até agora atraídos pelo Corolla, o best seller da Toyota nesta faixa, renovado pela empresa no fim de 2014 e já com outra atualização programada para o próximo ano.
Na realidade prática deste setor, nenhuma montadora pode dar-se ao luxo de baixar a guarda, por mais frustrantes que sejam as atuais condições do mercado em relação tanto ao passado quanto ao que todos projetavam para agora.
Afinal, se no topo do ranking setorial a General Motors tomou a liderança que, no passado, foi, durante anos e anos, da Fiat e da Volkswagen, nas posições subsequentes Toyota e Hyundai já ultrapassaram a Ford.
A mesma Ford que por décadas seguidas ocupou o quarto lugar e que, agora, em sexto, tem em seus calcanhares a Renault que, por sinal, aumentará seu poder de fogo com o sucessor do Clio, seu modelo de entrada.
No caso dos sistemistas, a manutenção dos programas de investimentos decorre justamente da necessidade de acompanhar as montadoras em tantos e tão frequentes movimentos. O que nem sempre é fácil na medida em que todos os novos veículos chegam ao mercado, hoje, carregados de novas tecnologias. No mínimo, para atender às exigências do Inovar-Auto, que torna obrigatório o aumento da eficiência energética e do conteúdo local.
São, em todas as esferas, decisões e movimentos que, por certo, se justificam. Afinal, depois de quatro anos seguidos de queda e de ter chegado ao provável ponto culminante daquela que é, de longe, a maior crise já atravessada por este setor no País, o mercado doméstico brasileiro ainda deverá consumir, neste ano, cerca de 2,1 milhões de veículos, conforme as projeções da Anfavea e da Fenabrave.
Colocada diante de um espelho, todavia, esta mesma realidade projeta a imagem reversa de que, mesmo com tudo contra – total instabilidade política, brutal insegurança dos consumidores em relação ao futuro, as mais altas taxas de juros do mundo e os mais elevados tributos do planeta – o mercado brasileiro de veículo ainda será muito provavelmente o oitavo maior do mundo.
E se há uma certeza comum a todos neste setor, está é a de que por mais que o mercado doméstico brasileiro ainda não seja aquele dos 3,8 milhões de veículos vendidos no ano recorde de 2012, certamente é maior, bem maior, do que o que será registrado neste ano. Pelo menos 50% maior.
Vale, portanto, o risco e a aposta.