Numa época em que o ajuste fiscal encabeça todas as listas de prioridades nada pode ser mais politicamente incorreto do que pleitear redução de impostos. Ainda mais se este pleito emanar do setor automotivo, tido e havido em certos círculos como um reduto de ardilosas multinacionais sempre interessadas em arrancar do governo benesses que possam aumentar seus lucros.
Todavia, em período ainda em que a lista de prioridades passa a incluir, também, a definição das bases de uma nova política industrial automotiva para substituir o Inovar-Auto, não há mais como continuar fazendo de conta que o problema não existe.
É preciso encarar: a carga tributária vigente no Brasil em torno da indústria automobilística – de longe a maior do mundo – é excessiva, irreal, ilógica e precisa ser reduzida a menos da metade.
Em termos concretos, segundo os cálculos da Anfavea, os tributos variam de 37,4% a 43,7% do valor do veículo. Ou seja: de um terço a quase a metade do preço que o consumidor final paga por um automóvel refere-se especificamente a impostos.
É claro que, no curto prazo, qualquer redução de tributos seria impossível na medida em que tornaria o tão necessário ajuste fiscal ainda mais difícil. Mas, quando o que se pretende, tal como advogam Anfavea e Sindipeças, é política industrial automotiva que seja capaz de orientar os rumos do setor pelo menos dez anos para frente, não há mais como continuar ignorando esta realidade.
A título de comparação, também segundo Anfavea, a carga tributária é de 22% na Itália, 21% na Argentina, 19% na Alemanha e no Chile, 16% no México, 7,5% nos Estados Unidos e 5% no Japão.
O Brasil é, assim, o único país no qual o consumidor chega a pagar preço equivalente ao custo de dois carros para levar apenas um para casa.
Trata-se de distorção que sobrevive há décadas. Nasceu na época dos planos econômicos que pretendiam derrotar a hiperinflação via congelamento dos preços, veículos incluídos.
Invariavelmente tais congelamentos de preços acabavam aumentando subitamente as vendas, o que gerava descompasso entre a oferta e a demanda, dando margem para que os concessionários cobrassem ágio – um sobrepreço em relação aos valores vigentes nas tabelas.
Além de tudo, como não podia ser contabilizado em razão do congelamento dos preços, o dinheiro gerado pelo ágio virava caixa dois e, assim, fugia completamente do controle e dos tributos governamentais.
Foi justamente para tentar capturar este ágio que os impostos foram sendo gradativamente aumentados até atingirmos o elevado patamar atual. Afinal, no raciocínio cartesiano bem típico da época, se o consumidor estava disposto a pagar mais para ter o carro, que fosse o governo a ficar com a diferença.
Os planos econômicos foram se sucedendo e a hiperinflação, por ironia, acabou derrotada por caminho que evitou o congelamento dos preços. Décadas se passaram desde então, mas os tributos automotivos jamais retornaram aos patamares anteriores. Subiram e lá em cima ficaram.
Por quê? Simples: na medida em que nenhum veículo pode rodar sem ser licenciado e não tem como licenciá-lo sem contar com um número próprio e específico de chassi, todo produção e venda passa a ser forçosamente oficial, o que impede qualquer tipo de sonegação.
A indústria automobilística transforma-se, assim, para o governo, numa máquina de arrecadação perfeita. Nenhum outro setor da economia tem esta característica. Ainda mais com os aperfeiçoamentos que o sistema foi adquirindo ao longo dos anos com a adoção, por exemplo, do regime de contribuinte substituto, que centraliza nas montadoras o recolhimento de praticamente todos os tributos da cadeia automotiva, inclusive os referentes ao elo responsável pela comercialização.
Ou seja: tributo automotivo representa para o governo dinheiro em caixa. Líquido e certo. E quanto maior for o tributo, tanto maior será, então, o dinheiro em caixa. E assim a distorção ficou, ficou, ficou…
Agora, porém, com a indústria automobilística cada vez mais global e com o setor, no Brasil, tendo de se recuperar de crise que reduziu suas vendas pela metade, é tema que necessariamente terá de ser enfrentado.
Em função do ajuste fiscal – necessário e prioritário ajuste fiscal – é bastante provável que nada de concreto se possa fazer no curto prazo. Mas no bojo de uma política industrial automotiva, a redução da atual carga tributária, ainda que gradativa, seria muito bem-vinda. Sobretudo se diretamente vinculada à eficiência energética, aumento da segurança e redução das emissões.
Até por uma questão de bom senso, não parece lógico que ao governo, que não aperta um único parafuso, caiba a parte do leão do resultado gerado pela venda de qualquer veículo.
Cabe lembrar, além disso, que a redução dos tributos automotivos a algo mais próximo da média vigente em outros países não é exatamente uma benesse para as montadoras, mas, sim, um direito líquido e certo do consumidor que é, afinal, quem realmente paga a conta.