Há usos melhores do tempo de qualquer pessoa do que sentar no banco do motorista e dirigir feito um robô, apenas tentando evitar bater em alguma coisa. A máquina pode fazer este trabalho tão bem quanto, se não melhor.
Se colocado por alguém que trabalhe em qualquer das empresas instaladas no Vale do Silício, Estados Unidos, tal conceito poderia muito bem ser interpretado como mera bravata, daquelas que se colocam na mesa na hora do happy hour apenas para impressionar os amigos ou provocar o debate.
No entanto, quando tal afirmação vem de ninguém menos que Sergio Marchionne, comandante global da FCA, é melhor prestar atenção. Trata-se, afinal, de alguém que não apenas entende, e muito, do setor automotivo, como tem condições, por cargo e função, de agir para transformar suas projeções em realidade.
Há pouco mais de um mês, quando esteve no Brasil para o lançamento do Compass, o mais novo produto Jeep, Marchionne foi até além. Revelou que os resultados da parceria do grupo que comanda com a Google – que objetiva justamente o desenvolvimento de veículos autônomos – renderão seus primeiros frutos já em 2017. “Acho que vocês verão nossos primeiros veículos no primeiro trimestre do ano que vem”, disse.
E mais: afirmou que “o custo da direção autônoma não será muito grande. Será possível torná-la disponível para a maioria dos consumidores por um preço razoável”.
Marchionne se declarou convencido de que o “negócio automotivo vai mudar drasticamente na próxima década”. Alinhou-se, assim, com o que vem sendo dito e repetido à exaustão pelos principais executivos de alto escalão de praticamente todas as montadoras.
É cada vez mais comum ouvir-se desses executivos que a indústria automobilística caminha na direção de deixar de ser fabricante de automóveis, caminhões ou ônibus para se transformar numa provedora de mobilidade, seja de pessoas ou de cargas.
Os exemplos desta tendência estão por toda parte. Ainda na última terça-feira de outubro, 25, a Otto, a unidade de veículos autônomos controlada pelo Uber, anunciou a conclusão da primeira entrega comercial de carga transportada por um de seus caminhões autônomos. Uma carga de cerveja foi levada de Ford Collins, Colorado, EUA, até Colorado Springs, num percurso de 200 quilômetros em rodovias comuns. Havia um motorista na cabine, treinado para assumir caso se tornasse necessário, o que não aconteceu.
Cerca de um mês antes a Mercedes-Benz havia apresentado, na Alemanha, uma van elétrica experimental equipada com um sistema que automatiza a coleta no armazém das mercadorias a serem transportada e as organiza dentro da cabine do veículo de maneira a permitir que, quando se chegar ao destinatário, uma espécie de mini empilhadeira robotizada possa selecionar autonomamente a encomenda a ser entregue.
Entrega, aliás, que, eventualmente, dependendo do tamanho da carga, pode ser feita até por um drone estrategicamente posicionado sobre a cabine e ao qual a mini empilhadeira tem acesso direto (ver edição 3.907 da Agência AutoData, de 9 de setembro).
Outros exemplos ligam-se mais diretamente à outra frente na qual grandes mudanças são esperadas: a da comercialização. No Brasil, Ford e General Motors instituíram neste ano programas pilotos nos quais trocaram os carros individuais atribuídos a um grupo de funcionários por uma frota de veículos que ficam a disposição de todos.
Neste caso especifico, o que se vende não é veiculo, mas a tal da mobilidade: a posse do veículo é trocada pela posse de um direito de uso de um entre vários veículos.
Nesta fase inicial a Ford ainda prefere colocar apenas um modelo, o Focus, no programa. A General Motors, de seu lado, optou por trabalhar como uma frota mais diversificada. Nesse caso, cada um dos membros do grupo escolhe, a cada dia, de acordo com a necessidade do momento, o carro com o qual pretende ir do trabalho para casa.
Se tiver programado uma viagem com a família, por exemplo, a escolha pode ser por um carro maior e mais confortável. Mas se tiver de fazer uma pequena mudança, melhor, então, optar por uma picape. Faz muito sentido.
No Salão de Automóvel que na quinta-feira abriu suas portas, em São Paulo, para o público em geral, a Audi apresentou outra variável do sistema. Também em caráter experimental, a empresa está colocando cinco carros da marca que podem ser locados por seus funcionais por hora, dia, semana ou mês, ao gosto do freguês (ver edição 3.949 da Agência AutoData, de 10 de novembro).
Em todos esses casos, a necessidade de posse do veiculo é deixada de lado. Nesta mesma direção, começam a aparecer, com alguma frequência, consumidores tradicionais do setor automotivo que trocam a posse do carro pela de um celular munido dos aplicativos do Uber ou de qualquer outra empresa que garanta um taxi na porta em dois ou três minutos. Em qualquer lugar e a qualquer hora do dia ou da noite. Com direto, ainda, a tomar um bom vinho durante o jantar no restaurante.
Também faz muito sentido. Ainda mais se o dinheiro resultante da venda do carro for utilizado, por exemplo, para uma grande viagem nas férias ou, eventualmente, para dar a entrada na compra de um imóvel próprio.
Na verdade, quem tem adolescente em casa já deve ter percebido que o carro saiu da lista de desejos prioritários dos jovens. Há pesquisas, inclusive, que chegam a indicar que, nestes novos tempos, a tendência seria a de que a posse do primeiro carro, seja por presente do pai ou por compra, está sendo postergada até a chegada do primeiro filho.
Até lá, as novas prioridades de gastos estão passando a ligar-se a viagens, cursos, shows, academias e compra de toda sorte de penduricalhos eletrônicos. Até porque a convivência com a turma toda está garantida hoje em dia, sem necessidade de deslocamentos físicos – e, portanto, de carro próprio – pelo WhatsApp e seus congêneres.
Na área da produção, a própria fabrica da FCA em Pernambuco na qual é fabricado o Compass, cujo lançamento trouxe Marchionne ao Brasil, indica o quanto é irreversível a tendência de aumento da automação das linhas de montagens.
Nos escritórios, as ausências de paredes e os vários departamentos trabalhando lado a lado já são quase que lugar comum. O próximo passo muito provavelmente vai incluir um sistema no qual ninguém tem sua própria mesa e as reuniões passam a ser em sua maioria on line, com larga aplicação do home office.
É bem verdade que há, ainda, um complexo caminho pela frente. A legislação, por exemplo, terá de se adequar a tantas novidades que seriam inimagináveis há apenas alguns poucos anos. Exemplo: um carro autônomo terá de ser programado para tomar decisões em momentos de
emergência. Digamos que a situação coloque em risco um pedestre ou, em caso de desvio abrupto, o passageiro do carro. Quem o programador deverá priorizar?
Quem trabalha ou pretenda trabalhar na área automotiva pode ter a certeza de que nada mais será como antes e, sobretudo, de que a mudança, desta vez, pouco terá de gradativa. Será muito rápida.
Os altos executivos globais do setor têm sido unanimes na projeção de que boa parte de tudo aquilo que hoje é experimental estará chegando ao mercado, de forma concreta, até os primeiros anos da próxima década.
No mundo automobilístico, convenhamos, isto não é muito mais do que depois de amanhã.