Nesta época de tantas e tão profundas mudanças, o ano novo automotivo começa com uma disputa inusitada que, na prática, representa a síntese perfeita desta atual fase do setor: duas diferentes empresas, a General Motors e a FCA, reivindicam a liderança das vendas domésticas de automóveis e comerciais leves no Brasil em 2016. E as duas estão certas.
Uma delas, a General Motors, foi a marca líder em vendas no ano passado. E a FCA, de seu lado, foi a empresa que, na soma das várias marcas que a formam – Fiat, Jeep, Chrysler, Dodge e Ram –, ocupou o topo do ranking no mesmo período, segundo comunicado distribuído pela própria companhia.
Não se trata, todavia, de mera disputa retórica. Na prática, são conceitos diferentes que refletem diferentes posicionamentos estratégicos de cada uma das empresas. E que tendem a ganhar cada vez mais relevância no Brasil e no mundo neste novo ciclo que o setor agora atravessa.
Historicamente, os rankings de vendas e de produção do setor automobilístico nacional sempre foram formados a partir do desempenho de cada marca em particular. Neste caso, os números da Fiat e da Chrysler aparecem computados em separado, da mesma forma que os da aliança Renault e Nissan ou os da Volkswagen e Audi, bem como os da Peugeot e Citroën que, juntas, formam a PSA.
Trata-se de forma de classificação que de fato faz sentido na medida em que, de forma geral, cada marca tem sua própria personalidade e direciona sua atuação, estratégia de marketing, rede de concessionários e padrão de pós-venda para diferentes universos de consumidores.
No entanto, numa época como a atual, na qual os ganhos de escala nas áreas de engenharia, compras e produção cada vez mais separam os vencedores dos vencidos, o ranking por empresa também passa a fazer muito sentido. Tão ou talvez até mais sentido do que o de marcas que até o ano passado vinha dominando a cena.
A fábrica inaugurada em 2015 pela FCA em Pernambuco é um bom exemplo deste quadro. Não se pode dizer que ela seja da Chrysler ou da Fiat. Desde o início foi projetada para produzir veículos das duas marcas. E, o que é ainda mais valioso em termos de ganhos de escala, projetada para produzir veículos desenvolvidos e fabricados a partir de uma base mecânica comum. Uma base mecânica FCA.
A rigor, as duas únicas grandes diferenças entre o Renegade da Chrysler e o Toro da Fiat, são, literalmente, o logotipo que vai na frente e a rede distribuição. No mais, cada cálculo de desempenho do projeto de engenharia, cada parafuso, cada chip, são, no mínimo, membros de uma mesma família. Irmãos de sangue.
Os consumidores podem até não perceber – e a estratégia está justamente em fazer com que não o percebam – mas o mesmo acontece com os veículos da Peugeot e Citroën, da Renault e da Nissan, da Volkswagen e da Audi.
A cara até pode ser diferente. Mas o coração é sempre o mesmo. Os carros da Volkswagen e da Audi fabricados na unidade industrial do grupo em São José dos Pinhais, PR, por exemplo, são, projetados pelos mesmos engenheiros e são paridos pela mesma linha de montagem. São diferentes na forma. Mas iguais na essência, naquilo que garante a economia de escala, seja de componentes e, sobretudo, de engenharia.
Esta verdadeira obsessão pelos ganhos de escala, sobretudo na área de engenharia, resulta da rapidez cada vez maior com que os veículos se tornam obsoletos hoje, seja em tecnologia embarcada, seja nos materiais utilizados, no design ou, pura e simplesmente, no sistema de produção que, a cada dia, se beneficia de máquinas cada vez mais flexíveis e inteligentes.
Na prática isto significa que se antes qualquer montadora tinha pelo menos dez anos para amortizar os custos de engenharia de qualquer novo veículo, hoje não tem mais do que a metade do tempo para fazer o mesmo.
Foi assim que, dentro de cada marca, surgiram as chamadas famílias de veículos que eram compostas por modelos iguais da metade para a frente e com traseiras diferentes que davam origem a hatches, sedãs, peruas e picapes.
Com o tempo, e sempre com o mesmo objetivo do ganho de escala de engenharia, tais famílias foram se tornando globais e, aos poucos, foram se transformando em multimarcas.
Por mais inacreditável que hoje possa parecer, a origem de tudo isso, o laboratório no qual o experimento foi primariamente testado, pode muito bem ter acontecido no Brasil quando, em meados da segunda metade da década de 1980, Volkswagen e Ford se uniram para formar a Autolatina.
Essa empresa juntou, apenas e exclusivamente no Brasil, as duas marcas, bem como as fábricas e as bases mecânicas das duas companhias para tentar evitar que ambas desaparecessem em meio a uma das muitas crises cíclicas do mercado automotivo nacional.
Em termos financeiros, até que funcionou. Mas a experiência acabou abortada em razão da extrema dificuldade de se juntar, na época, duas culturas de administração e de engenharia tão diferentes.
A Volkswagen, que sabia fazer carros populares, ingressou na Autolatina sem dispor de motor 1.0. E a Ford, que tinha o motor 1.0, nada entendia de carros populares. E quando as duas novamente se separaram, em 1996, a VW continuava sem motor 1.0 e a Ford sem carro popular. A cultura alemã de uma e a americana da outra jamais deram liga.
A necessidade acabou fazendo com que muita água corresse por baixo da ponte deste então. Hoje, até empresas diferentes unem com certa frequência esforços financeiros e de engenharia para desenvolver plataformas a serem utilizadas em comum.
São justamente estes novos tempos que acabam por gerar diferentes interpretações para os rankings do setor. Aliás, não apenas no Brasil: quem se der ao trabalho de perguntar ao Google quem foi o líder de vendas de automóveis no mundo em 2016, também vai encontrar duas respostas: Toyota e Volkswagen.