Empresários e executivos de alto coturno vem afirmando cada vez com mais frequência que abrem mão de qualquer subsídio em benefício de uma política econômica e industrial com regras fixas e vigência de longo prazo.
No setor automotivo, em particular, é um movimento que se iniciou há cerca de dois anos com Phillipp Schiemer, presidente da Mercedes Benz do Brasil, ganhou corpo no ano passado pela voz dos CEOs de várias montadoras de automóveis e, agora, neste início de 2017, começa a dar importante e decisivo passo além.
Na longa entrevista que concedeu para a edição de fevereiro da revista AutoData — que é especial, tem como tema “O Futuro da Industria Automobilística no Brasil”, dá inicio a comemoração dos 25 anos da editora AutoData e estará disponível para seus leitores em poucos dias – Antônio Megale, presidente da Anfavea, foi direto ao ponto.
Constatou que até como decorrência dos investimentos feitos em função do Inovar-Auto, as fábricas das montadoras instaladas no Brasil já estão, hoje, da porta para dentro, entre as mais eficientes do mundo. Todavia, quando expostos as deficiências estruturais do País, os produtos gerados a partir delas continuam perdendo quase que completamente seu poder de competição global.
Ou seja: as vésperas de se começar a definir o que virá depois do Inovar-Auto, que se encerra neste ano, o setor automotivo constata que sem que o País como um todo resolva seus problemas estruturais e, assim, também se torne mais eficiente, as montadoras permanecerão sem condições de enfrentar a competição externa. Seja para exportar ou, mais importante, para se defender das importações.
Megale não tem dúvidas de que em poucos anos o Brasil voltará a ser um dos maiores mercados de veículos do mundo, posição que havia alcançado em 2012 e que perdeu com a recessão dos dois últimos anos. “Precisamos, agora, criar as condições para conseguir nos colocar, também, entre os maiores produtores”, diz ele.
De fato, para o Brasil, de nada adianta ser um grande mercado caso ele tenha de ser abastecido predominantemente por veículos ou componentes importados de países mais eficientes – que é o que hoje provavelmente aconteceria caso fossem retiradas as barreiras tarifárias que agora protegem a indústria automobilística instalada no País.
Vale lembrar que o Inovar-Auto foi criado, há cerca de cinco anos, exatamente para interromper um galopante aumento da participação no mercado de veículos e de componentes importados – boa parte deles pelas próprias montadoras ou sistemistas.
Em parte, o programa funcionou. Atraiu várias novas montadoras e sistemistas, o que obrigou as empresas que aqui já estavam a investir pesado na modernização de suas próprias unidades industriais. Ou até a construir fábricas absolutamente novas, como foi o caso da Fiat, em Pernambuco.
Foi assim que chegamos a situação atual: do lado de dentro, nada a dever às fábricas instaladas na Europa, América do Norte ou Ásia. Todavia, toda esta modernidade e eficiência interna se esfacela quando se passa da porta para fora e se esbarra no Brasil real. No Brasil corroído por arcaicas legislações tributárias e trabalhistas, por desastrosa infraestrutura rodoviária, ferroviária e portuária, além de por doloridas entranhas nas quais a corrupção ainda se encarrega de abocanhar os melhores e maiores recursos que, de outra forma, iriam para a saúde, segurança e, mais que tudo, educação.
Foi tudo isto o que acabou provocando a atual mudança de tom das principais lideranças do setor automotivo. Está cada vez mais claro para todos que as reduções temporárias de impostos, juros artificialmente abaixo da inflação ou grandes compras do Estado só geram antecipações de compra. E, convenhamos, nada compromete mais o futuro de qualquer setor do que uma boa e aparentemente alegre antecipação de compra.
Pois bem: agora que qualquer carpete da Anfavea, do Sindipeças ou da Fenabrave já sabe que, com a estreita vigilância da OMC, a proteção alfandegária está com os dias contados, não há outra alternativa. Não adianta mais pensar exclusivamente na empresa. Não adianta mais pensar no setor em particular. É preciso, é fundamental, pensar no País como um todo.
Pode até parecer novidade, mas, na verdade, não é. Trata-se, na prática, de uma volta ao passado.
Quando a indústria automobilística começou no Brasil, em meados do século passado, os executivos das montadoras que aceitavam vir para ao Brasil sabiam que um de seus maiores desafios seria ajudar a transformar um país agrícola em industrial, sem o que não haveria como viabilizar a efetiva produção local de veículos.
Mais do que meros executivos, eram verdadeiros empreendedores que vinham para permanecer longo tempo, em muitos casos para o resto da vida, como foi o caso, entre tantos outros, de Wolfgang Sauer, que presidiu a Volkswagen, e Harold Uller Gessner, que comandou a Karmann Ghia. Eram assim, por definição, pessoas para as quais o longo prazo tinha no mínimo tanta importância quanto os resultados de curto prazo.
Com o tempo, o setor automotivo cresceu no Brasil, ganhou relevância internacional e, com isso, as subsidiárias brasileiras passaram a fazer parte da rota de subida de qualquer executivo interessado em ocupar, na matriz, postos no topo da cadeia hierárquica. O foco, então, passou a ser o resultado da empresa nos próximos três anos, o tempo médio de permanência no País antes da próxima promoção.
Finalmente, nos anos que se seguiram a crise financeira global de 2008, o que passou a contar, no Brasil e, a rigor, em todo o mundo, foi o resultado do final do trimestre, o momento de prestar constas aos acionistas. E com a permanência dos executivos no posto ou no próprio emprego sempre em risco, cada vez mais na dependência de números favoráveis.
Quando a estratégia está focada no curto prazo, qualquer medida que venha a ajudar a aumentar as vendas de cada dia é bem-vinda. Por mais que ela represente apenas mera antecipação de compra. Por mais que ela comprometa o futuro de médio ou de longo prazo.
No entanto, neste momento em que, sob a vigilância da OMC, o programa que deverá substituir o Inovar-Auto tem de ser construído com doses muito menores de proteção alfandegária, o foco necessariamente tem de mudar.
Volta-se, assim, enfim, aos velhos tempos. Volta-se a época que o governo nada fazia que pudesse prejudicar a indústria automobilística porque qualquer coisa que prejudicasse o setor prejudicaria também o País. E, de seu lado, a indústria automobilística nada fazia que pudesse comprometer o desenvolvimento futuro do País porque qualquer coisa que o prejudicasse afetaria, também, o futuro das montadoras.
Volta-se, em síntese, aos tempos em que todos têm de passar a pensar e se portar como estadistas. Todos têm de se preocupar com o País. Nem que seja por mera esperteza.