Os dados divulgados na terça-feira, 7, pelo IBGE sintetizaram e desnudaram o quadro em toda a sua dramaticidade: o Brasil atravessa a maior crise econômica de sua história. Com a queda de 3,6% no ano passado, o País acumulou 9% de redução do PIB deste o segundo trimestre de 2014. É a maior recessão desde que o PIB passou a ser medido, em 1948. É uma volta de seis anos no tempo, ao patamar de 2010.
Não foi sem razão, assim, que a indústria automobilística amargou mais uma queda acentuada em suas vendas em 2016, a terceira consecutiva, reduzindo, no acumulado de todo o período, em 50% as vendas de automóveis e em 70% as de caminhões e ônibus.
E certamente não foi à toa também que Henrique Meirelles, ministro da Fazenda, preocupou-se em vir a público, na mesma terça-feira, para afiançar que tal quadro representava apenas uma visão do que aparecia no retrovisor.
Quando visto pelo para-brisa, garantiu ele, o quadro já se mostra bem mais favorável: crescimento de 1% no PIB neste ano como um todo e, mais importante, já em um patamar de 2,4% no último trimestre, o que abriria o caminho para um resultado positivo na faixa de 3,2% em 2018. Seria, enfim, a inversão da curva de tendência.
Em termos concretos, apesar de alguma frustação com os resultados colhidos nos dois primeiros meses deste ano, o cenário vislumbrado a partir do para-brisa dos principais executivos das montadoras, produtores de componentes e distribuidores de veículos coincide com a interpretação de Meirelles, de que o pior já ficou para traz.
Abre-se, então uma nova frente de discussão: em se aceitando como verdadeira a tese de que os tempos mais duros e difíceis já estão confinados ao retrovisor, quanto tempo será necessário para que o País como um todo e a indústria automobilística, em particular, possam vislumbrar no para-brisa ao menos a recuperação do terreno perdido nestes últimos anos?
Antes de tudo é preciso considerar que, por suas próprias características, as vendas de veículos caíram de cinco a dez vezes mais do que o PIB neste período. E, na prática, são exatamente estas mesmas características bem particulares que abrem, agora, a possibilidade, real e concreta, de que a retomada do setor venha a ser dar em índices anuais bem superiores ao do PIB.
O quadro mostrado pelo retrovisor é, sem duvida, desalentador: nos últimos três anos foram 2,6 milhões de demissões, o que tirou de circulação R$ 8,1 milhões que resultariam dos salários que deixaram de ser pagos. Consequência: redução de consumo das famílias em 4,2% em 2016, que se somou a outra, de 3,9%, que já havia sido registrada no ano anterior.
No ano passado, em particular, a queda foi generalizada, em todas as frentes: de 3,8% na indústria, 2,7% nos serviços e 6,6% na agropecuária, neste caso em razão de clima adverso que dizimou um quarto da produção projetada de milho.
São, todos eles, fatores devastadores para um setor, como o automotivo, umbilicalmente dependente tanto da possiblidade quanto da disposição dos consumidores de assumir uma operação de crédito raramente inferior a 24 meses.
As milhões de demissões e seu reflexo na renda familiar foram, de todos, provavelmente o maior acelerador da velocidade com que a queda de vendas de automóveis se deu, muito acima de qualquer projeção das montadoras.
Tratou-se, em síntese, do processo inverso daquele que no período anterior possibilitou que vendas mais que dobrassem em poucos anos, a ponto de transformar o Brasil no quarto maior mercado de veículos do mundo, sem igual inclusive em toda a Europa.
Vale lembrar que na base daquele espantoso crescimento em que tantas novas montadoras se sentiram atraídas para o Pais estava não apenas o alongamento dos prazos de financiamento, mas, sobretudo, um galopante processo de aumento geométrico da renda familiar.
Foram vários anos seguidos com a criação média de três milhões de novos empregos por ano. Como decorrência, a cada dois ou três meses mais um membro da família passava a colaborar na formação da chamada renda doméstica que, assim, crescia exponencialmente em termos reais, muito acima da inflação.
Em poucos meses a quantidade de dinheiro que entrava em cada casa passou a dobrar, triplicar ou, em alguns casos, até quadruplicar, na dependência do número de pessoas com idade suficiente para ocupar alguma das dezenas de novas vagas de trabalho que se abriam todos os dias. Uma melhor remunerada do que a outra.
É a dinâmica típica dos países em desenvolvimento que raras vezes é enfocada nos livros de economia, quase sempre escrito na ótica do outro lado do mundo.
Quando só um dos membros da família trabalhava, apenas as necessidades básicas eram cobertas. Todavia, quanto o segundo conseguiu emprego, a renda já quase dobrou e a refeição passou a incluir carne, iogurtes, refrigerantes, cerveja e cabelereiros toda semana. No mínimo para cuidar das unhas.
O terceiro empregado garantiu a melhora do vestuário e a modernização dos eletrodomésticos. E, finalmente, com todas estas necessidades básicas supridas, o quarto salário adicional abriu espaço para a prestação do tão sonhado e ambicionado carro novo.
Quando as demissões em massa começaram, ocorreu o processo inverso: o primeiro demitido já comprometeu a capacidade de pagamento da prestação do veículo. Com isso, os bancos se tornaram cada vez mais seletivos e, escudados no aumento da inadimplência, trataram de aproveitar para subir substancial e continuamente os juros.
Para fechar o quadro, com tantos desempregados ao redor, mesmo aqueles que conseguiram ficar fora das listas de cortes perderam a segurança em relação ao futuro e trataram de evitar qualquer tipo de comprometimento adiante da renda.
E foi assim que uma queda média anual do PIB em torna de 3,5% acabou desembocando numa redução média anual superior a 20% nas vendas de automóveis. Absolutamente desproporcional.
É obvio que, agora, o crescimento médio anual projetado de 3% a 3,5% do PIB não terá força para rapidamente recompor o padrão anterior de emprego, da renda família e da segurança em relação ao futuro que, em conjunto, permitiram a venda recorde, antes da recessão, de 3,6 milhões de veículos em um ano.
Mas é aqui que algumas outras das características muito próprias e específicas do setor automotivo podem dar boa cota de contribuição.
A começar pelo fato de que nada é mais relativo do que o preço de um automóvel. Um carro zero quilômetro custa a exata diferença entre o preço de tabela e o valor do usado que está sendo utilizado como entrada.
Quando mais novo for o carro usado, menor será, portanto, o preço relativo do carro novo. E, consideradas as vendas realizadas pelo setor nos últimos quatro anos, existem cerca de 10 milhões de consumidores rodando com carros seminovos. Pois bem, ao menos para este ponderável universo, o preço real de um carro novo será, no máximo, metade do preço de tabela.
Como a parte restante, ainda a ser quitada, geralmente envolve financiamento bancário, outra importante frente de diminuição relativa dos preços dos carros novos, nesse caso via redução do valor da prestação, ficou evidente na ata da ultima reunião do Copom – Comitê de Politica Monetária do Banco Central.
Ao projetar inflação de 3,8% neste ano, já bem abaixo do centro da meta, o BC indicou quase que sem meias palavras que vai, sim, apressar a redução da taxa Selic e, assim, abrir o caminho para forçar a redução também das elevadas e proibitivas taxas de juros hoje cobradas pelos bancos.
É certo que, mesmo com tudo isso a favor, nem o mais otimista dos executivos do setor automotivo se atreveria a projetar que, agora, na hora da retomada, a proporção de 3,5% para 20% a 25% entre o PIB e desempenho do setor possa vir a ser repetida, desta vez, felizmente, do lado positivo, o de crescimento.
Mas em se tratando da dinâmica própria dos países emergentes, aquela que não está nos livros, o dobro do índice relativo ao PIB pode ser uma boa aposta. E mesmo o triplo não seria exatamente fora de propósito na medida em que, aos poucos, o desemprego for diminuindo e, simultaneamente, a confiança dos consumidores em relação ao futuro for sendo reconquistada.