São Paulo – Português de nascimento e francês de formação Carlos Tavares talvez seja o último dos líderes carismáticos que comandaram grandes fabricantes globais de veículos, com pensamentos cortantes e frases fortes constantemente replicados pela imprensa internacional, que sempre reconheceu nele um executivo diferenciado, capaz de trazer de volta aos lucros mortos-vivos da indústria, como foi o salvamento liderado por ele do Grupo PSA, entregue aos seus cuidados pela família Peugeot em 2014 – quando Tavares decidiu sair da Renault e da sombra de Carlos Ghosn.
O ápice de sua jornada profissional começou em janeiro de 2021, quando foi criada oficialmente a Stellantis, quarta maior fabricante de veículos do mundo, dona de catorze marcas, corporação de porte gigantesco que ele mesmo arquitetou a partir da fusão dos grupos FCA e PSA. Mas a grande fase durou só quatro anos: terminou no último 1º de dezembro quando a Stellantis, por meio de comunicado, informou que seu CEO estava deixando a empresa de forma imediata, antes da já programada sucessão, prevista para acontecer no início de 2026, “por divergências de visões” com acionistas e membros do conselho de administração.
Temido e desprezado
Relatos publicados pela imprensa internacional dão conta que Tavares era temido por seus diretores e desprezado por fornecedores e concessionários, com os quais tinha constantes embates, principalmente nos Estados Unidos, onde sua estratégia de perseguição obstinada por altos lucros manteve preços altos e pátios lotados de carros de difícil negociação.
Jeff Laethem, concessionário da Stellantis em Detroit, disse à Automotive News que a situação com Tavares no comando “não poderia ser pior”, devido ao crescimento dos estoques e queda nas vendas. Erik Gordon, professor na Universidade de Michigan, foi ainda mais assertivo: “Ninguém sentirá falta dele [Tavares] na América do Norte, não pelos fornecedores com quem ele brigou, não pelos concessionários com quem ele brigou, e não pelos compradores que ignoraram seus carros”.
Trabalhadores na Itália e nos Estados Unidos, países ameaçados por demissões e fechamento de fábricas do grupo, também queriam ver pelas costas o agora ex-CEO: “Tavares está saindo deixando para trás uma bagunça de dolorosos layoffs [suspensão de contratos de trabalho] e veículos sobrevalorizados nos pátios dos distribuidores”, resumiu Shawn Fain, presidente do UAW, o tradicional sindicato dos trabalhadores da indústria automotiva nos Estados Unidos.
Do lucro ao prejuízo
Tavares sempre foi um executivo de falas francas e diretas, sem rodeios, tem posições fortes e pragmáticas a respeito das dores da indústria e das ações obstinadas em busca do lucro – alguns mais sinceros o chamaram de “psicopata do desempenho”. Foram estas atitudes que deram resultados, principalmente na reestruturação da PSA e nos primeiros anos da Stellantis, justamente por isso foi classificado como gênio incontestável da gestão – e ganhou muitos prêmios de publicações europeias.
Não é o primeiro e nem será o último executivo autoconfiante ou arrogante do mundo corporativo. Mas não é isto que derruba CEOs. Eles caem quando suas ações provocam prejuízo aos acionistas, o que apaga rapidamente os lucros do passado. É exatamente isto o que aconteceu no último ano, o que levou a Stellantis a informar que substituiria Tavares ao fim de seu contrato, em 2026. No entanto a saída foi antecipada em mais de um ano porque os resultados financeiros da companhia estavam piores do que o esperado e o conselho de administração julgou que o executivo estava tomando decisões de curto prazo para salvar sua reputação com prejuízos à empresa, segundo fontes relataram à Bloomberg.
Promessa impossível
Quando assumiu como CEO da Stellantis, logo no começo de 2021, quando o mundo ainda enfrentava efeitos adversos da pandemia de covid, Tavares disse que o tamanho do grupo e suas diversas marcas eram as grandes forças da corporação, por isto não pretendia fechar fábricas nem demitir funcionários. Os primeiros balanços foram divulgados com lucros vistosos e o executivo garantia que o grupo estava preparado para qualquer tempo ruim, pois poderia sobreviver com metade do faturamento apresentado.
Tudo foi tão bem e acima das expectativas que, em 2022, quando apresentou o plano estratégico da companhia, o Dare Forward 2030, Tavares ousou fazer promessas que não conseguiu cumprir. A principal, para os ouvidos dos acionistas, é que entregaria margens de lucro operacional sobre o faturamento acima de 10% de 2024 a 2027, e superiores a 12% a partir de 2030, ao passo que a maioria das empresas desta indústria reporta algo de 4% a 6%, ou até menos em casos mais problemáticos.
Apesar de ousada a promessa pareceu factível, pois sob Tavares a Stellantis reportou margem de 11,8% em seu primeiro ano de atividade, que subiu para vistosos 13,4% em 2022 e 12,8% em 2023.
O problema é que estes resultados já se mostraram insustentáveis. Nos primeiros anos de atividade a crise de falta de chips, que pode parecer prejudicial, foi extremamente benéfica ao caixa da Stellantis. Como havia falta de produtos, mais demanda do que oferta, a empresa subiu os preços como quis e privilegiou os lucros, que de fato vieram fortes.
Após a normalização do mercado ficou difícil sustentar esta estratégia, mas Tavares seguiu em frente com sua obsessão pelos lucros, pressionando fornecedores por corte de custos – com alguns casos que terminaram em tribunais da Europa e dos Estados Unidos –, ao mesmo tempo em que empurrava carros com preços altos aos concessionários. Foi assim que conseguiu fechar 2023 com o lucro líquido de € 19,5 bilhões – o segundo maior do mundo dentre as montadoras, só perdendo para a Toyota – mas os estoques subiram à casa de 1,5 milhão de veículos, segundo noticiaram agências de notícias.
A margem de lucro do ano passado foi inflada pelo faturamento de carros topo de linha aos concessionários que não tinham compradores para eles. A conta chegou este ano quando a Stellantis começou a tentar limpar os estoques, algo que se tornou ainda mais difícil diante da queda de 17% nas vendas nos Estados Unidos. Segundo dados da Co-Pilot divulgados pela Reuters os estoques da Ram 1500 e Jeep Wagoneer – duas das maiores fontes de lucros do grupo – chegam a 115 dias, ou vinte dias a mais do que concorrentes como Ford Expedition e Chevrolet Silverado.
Assim a até então bem azeitada máquina de lucros engripou. Ao fim do terceiro trimestre, em 30 de setembro, a Stellantis emitiu um alerta ao mercado, avisando que a margem lucro operacional deste ano cairá para 5,5% a 7% – bem mais em linha com a realidade da indústria atualmente.
Ou seja, a promessa de margens anuais de dois dígitos ficou impossível de ser cumprida diante de muitas marcas e falta de escala, e o mercado já precificou o prejuízo: as ações da Stellantis já caíram 38% nos últimos doze meses e os estoques deverão queimar algo em torno de € 10 bilhões do caixa da companhia.
Parte de reportagem que será publicada na edição 417 da revista AutoData, de dezembro de 2024.