São Paulo – Era um belo e ensolarado 23 de agosto de 2013 em Irvine, Califórnia, Estados Unidos. Centenas de jornalistas do mundo todo estavam ali reunidos a convite da Nissan, e ouviram em claro e bom som de Andy Palmer, então vice-presidente, que naquele momento a empresa assumia compromisso público de em 2020 vender “de forma massificada e a preços acessíveis” veículos 100% autônomos no mercado global. E que, assim, lideraria mundialmente a oferta desta tecnologia.
AutoData foi uma das três publicações brasileiras presentes ao evento, e a única especializada em economia e negócios no setor automotivo.
Este compromisso, aliás, estava agendado para ser revelado pessoalmente por Carlos Ghosn, mas o na época todo-poderoso executivo faltou à apresentação para apagar um incêndio enorme: naquele mesmo 23 de agosto de 2013 seu braço-direito e COO da Renault, também Carlos, mas Tavares, pedia demissão em caráter irrevogável. Seis meses depois ele chegava ao Grupo PSA, do qual hoje é o CEO.
Pouco mais de cinco anos depois daquele dia, neste fevereiro de 2019, a Nissan admite publicamente que não cumprirá o compromisso que assumiu. Fala, agora, em 2022, mas já não mais utiliza as expressões “em massa” e muito menos “a preços acessíveis”.
Para Humberto Gómez, diretor de marketing da Nissan do Brasil e responsável pelo programa de veículos elétricos por aqui, a culpa não é da Nissan: “Não há normas e regras estabelecidas para a circulação de veículos autônomos. Além disso a infraestrutura é precária. Imagine um carro autônomo circulando em São Paulo: seria imprevisível, com quase certeza de um acidente”.
Ele argumenta, ainda, que a tecnologia em si já está pronta, mas “falta sintonia da sociedade para isso. As pessoas não estão prontas”. Seria, então, nossa culpa que a Nissan não cumprirá seu compromisso?
Falando friamente em tecnologia vale a pena relembrar novamente aquele agosto de 2013. No mesmo evento a Nissan apresentou um protótipo de seu carro autônomo, montado em um Leaf de primeira geração. Em um circuito fechado mostrou-se plenamente capaz de se autodirigir: leu e interpretou placas de velocidade, ultrapassou carros mais lentos saindo e retornando à sua pista e desviou de pedestres distraídos e outros veículos parados sem qualquer dificuldade.
Seria mais do que razoável pensar que cinco anos depois essa tecnologia tenha evoluído absurdamente, considerando, por exemplo, que o Apple CarPlay foi lançado só em 2014, mesmo ano em que o Uber chegou ao Brasil. Ou que em 2013 os carros mais vendidos do Brasil foram, pela ordem, Gol, Uno e Palio – que não tinham motores três cilindros nem sistemas multimídia conectados ao smartphone nem qualquer outra coisa desse tipo.
Igualmente seria bastante razoável considerar que a culpa, por óbvio, é da Nissan, que, apoiando-se nos próprios argumentos de Gómez, não previu que dali em mais sete anos não haveria acordo ou interesse em legislar sobre veículos autônomos, ou que não existiria tempo ou dinheiro suficientes para adaptar a infraestrutura das grandes cidades para os carros autônomos – mas não deveria ser o contrário? – ou que, simplesmente, as pessoas não demonstrariam tanto interesse assim por essa tecnologia.
O fato em si, e neste caso o descompromisso da Nissan, parece funcionar como um exemplo perfeito, é que seja por estratégia de marketing, por sede de engordar fatias de mercado e/ou margens de lucro ou mesmo por puro deslumbre quase todas as montadoras exageram na questão dos veículos autônomos. E agora, aparentemente, estão entrando em uma fase mais realista.
Inegável que diversos modelos, inclusive muitos oferecidos no mercado brasileiro, já oferecem tecnologias semiautônomas, como manutenção em faixa de rolagem, frenagem automática de emergência e assistente de estacionamento. Assim como é verdade que essas tecnologias não têm o mínimo uso prático: servem só para impressionar passageiros em uma demonstração e mais nada. No dia-a-dia são simplesmente esquecidos ou desabilitados, pois mais incomodam do que ajudam – mesmo que seja por falta de hábito ou por mera inadequação.
E isso para não mencionar as prováveis e infindáveis discussões sobre retirada do ‘direito’ de dirigir do motorista e de quem será a culpa em caso de acidente, que certamente ainda renderão muitas argumentações técnicas e filosóficas.
Talvez mais uma vez seja o momento de a indústria olhar com maior interesse e com real vontade para seu cliente e para o que ele realmente quer. E parece que, pelo menos até 2020, que já é o ano que vem, certamente carros autônomos estão muito, muito distantes disso.
Se pudesse dar um conselho à Nissan este seria repensar novamente seu compromisso: melhor calcular 2030, 2040, quem sabe. Não que isso signifique negar nossa evolução tecnológica, necessária e indispensável, sim, mas que deveria sempre, em primeiro lugar, tomar como prioridade e norte aquele que estará sempre no interior de um carro, mesmo que sem dirigi-lo.
Muitas vezes as coisas mudam de sentido e lugar quando menos esperamos, e o melhor indício disso hoje está dentro da própria Nissan: Palmer, o porta-voz do compromisso de 2013, deixou a empresa no ano seguinte e hoje é CEO da Aston Martin. E Ghosn, que deveria ter sido o porta-voz, está preso no Japão. Prever o futuro, assim, hoje parece mais fácil do que nunca, mas a realidade dos dias mostra, com toda certeza, que jamais foi tão difícil.
Foto: Divulgação.
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